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Lampião perdeu os tamancos | por Pádua Marques


Foi de ficar ali de queixo caído ouvindo o cantador de romances cantar e exaltar os feitos e a valentia de Lampião. E o tempo e o sol foram passando por cima da cabeça dele naquela manhã de agosto de 1939. Chico do Tinga era rapaz até que bom, pouco mais de vinte anos, nem branco nem preto, cara chata, roupa ordinária, calçado de tamancos gastos nos calcanhares, um fio de bigode riscando embaixo do nariz e a barba espinhenta e mal cuidada. Mas tinha dessas caídas pra ficar se interessando por coisas ditas dos outros, principalmente tratando de valentia.

Filho de Chico Tinga, o maior cortador de boi do Curre, gostava de ficar ouvindo conversa pelas portas das agências e casas de comércio do centro pelo lado do mercado e na rua Grande, tão logo encerrava os serviços de botar água nas casas de seu Pedro Machado, doutor Mirócles e outros ditos ricos e importantes de Parnaíba. O pai agora vivia gemendo no fundo de uma rede e praguejando tudo e todos pelo seu sofrimento. Mas não fazia força pra deixar dona Rita, a mulher, procurar ajuda. Mas deixasse falar em seu Alarico que ele se acalmava.

Naquele dia o serviço terminou cedo e ele Chico do Tinga, depois de lavar as canelas e os pés no rio lá embaixo no porto Salgado, subiu o barranco e tocou no rumo da Casa Inglesa. Era lá onde sempre havia movimento no sentido da praça da igreja de Nossa Senhora das Graças, do Cassino, das lojas de tecidos, dos engraxates e das pensões e do Hotel Carneiro. Ele conhecia aquilo tudo como a palma da mão. E era de onde que de repente podia aparecer um freguês da sua água pra o dia seguinte. E foi na frente da agência de seu Ranulfo que ele encontrou o mundo naquele dia.

O cantador era um sujeito até que de boa estatura. No chão da calçada ele estirou uma esteira de palha e muitos romances, com as histórias e os feitos do cangaceiro que havia morrido em confronto com as volantes do tenente Bezerra em Angicos no ano passado. E no meio daquela cantoria ele ia oferecendo os romances, respondendo uma pergunta aqui e outra mais na frente. Depois falava de onde vinha e pra onde iria depois, gabava a gente da Parnaíba e ia recebendo o tostão da venda de mais um. Aquele era bom, senão dos melhores que já haviam aparecido na Parnaíba!

E naquela arrumação toda da manhã de agosto de 1939 havia instante que o cantador estava rodeado de gente. Operários das forjas, caixeiros, estudantes do Instituto São Luiz Gonzaga, velhos, estivadores, gente passando da Coroa pra o Mercado na praça Coronel Jonas. Mas era questão e um rasgo de tempo pra que todo mundo se afastasse e fosse atrás do que fazer. Mas Chico do Tinga ficou ali, convencido, ouvindo o cantador de romances e de vez em quando metia a mão no bolso procurando coragem e um tostão pra comprar um daqueles livros.


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Chico do Tinga não sabia ler e nem escrever. Nem ele e nem os outros cinco irmãos de dentro de casa e os que já viviam fora. O pai nunca procurou dar nome a eles. As duas irmãs, as mais velhas, Zita e Socorro, ganharam o mundo no rumo de São Luís no Maranhão e a notícia na Parnaíba era de que ganhavam a vida sendo mulheres da vida. Uma delas foi parar até em Belém, no Pará. Diziam que tinha casa boa e até automóvel. Isso fazia o velho Tinga ainda mais desgostoso da vida das filhas e reclamando com dona Rita. O antigo cortador de carne do Curre vivia se lastimando. Mas tinha lembranças dos bons tempos quando em junho botava o boi de pano pra brincar. Ele na frente de tudo.

E lá pelas tantas a praça em volta do cantador ficou tão cheia com a história de Lampião que o botador de água deu de garra e comprou um romance. Não sabia ler, mas iria pedir pra algum conhecido fazer pra eles em casa de noite, antes de tomarem o rumo da rede. Chico do Tinga meteu a mão no fundo do bolso e de lá veio a moeda. Negócio feito com o romance, foi buscar o jumento e as ancoretas ali perto e seguiu no rumo da banca de café com bolo de dona Zefinha, a vizinha de sua mãe, no Mercado Central. De hora em hora pegava no romance e ficava assuntando que história podia estar escondida naquelas folhas de papel. E de tanta admiração com o cantador de romances na frente de seu Ranulfo Raposo ali na rua Grande, contando os feitos e a valentia vencida de Lampião e seu bando que Chico do Tinga nem se deu conta de que na lavagem dos pés na beira do rio, quando arregaçou as pernas da calça de que o par de tamancos ficou lá esquecido. Naquele movimento todo de ver gente e embarcações no porto, o calçado foi perdido. Quando já estava caminhando na areia quente da Guarita foi que se deu conta. Seguiu em frente e morto de feliz amaciando os dedos nas folhas do romance que tinha dentro Virgulino Ferreira da Silva. 

*Pádua Marques - escritor, contista e romancista membro da Academia Parnaibana de Letras - cadeira 24. 


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