Era de chegar bem cedinho na praça do Coronel Jonas e esperar as colegas vendedoras de temperos vindas dos Morros da Mariana irem chegando e montando os tabuleiros de tomates, murici, cebola verde, mariscos e até siris. Mas isso era duas vezes, quando muito, sábado e domingo. No resto da semana era de ficar em casa fazendo suas bonecas de pano, correndo atrás de linha e de tecido, alguma chita bonita, algodão pra encher e nos trabalhos de casa cuidar do filho Sebastião, um menino de oito anos, cego de nascença e que dava muito trabalho.
Rosa, Rosa dos Santos, Rosa de dona Raimunda, a Rosa das Bonecas. Todo mundo conhecia e sabia aonde ficava seu ponto de venda na praça do Coronel Jonas. Pegado o dia e o sol tinindo lá estava ela e suas companheiras trabalhando. Ali mesmo ia fazendo suas bonecas de pano entre um rasgo de tempo depois de atender uma ou duas pessoas. Era o que lhe garantia algum trocado no final da manhã, uns poucos cruzeiros que iriam pra bolsa de couro miúda e amarrada na cintura.
Um dia chegou a vender cinco bonecas de uma só vez pra uma freguesa, pelo que parecia gente de fora, vinda do Rio de Janeiro. Decerto era mulher de algum grandão do Moraes e que se admirou daquela sua arte. A freguesa, muito fina, branca, de roupa boa, que estava na ocasião acompanhada de uma outra pessoa, esta mais feia de feição e que deveria ser sua parente em Parnaíba, levaria as bonecas como presente pra alguma afilhada. Rosa ficou satisfeita.
Não tanto pela explicação daquela mulher cheirosa e de roupa boa sobre as bonecas. A mulher disse e repetiu que aquele seu ofício era raro e estava desaparecendo. Rosa estava feliz porque naquele dia e no final da manhã quando fosse embora pra os Campos, tinha cinco cruzeiros na bolsa. Aquilo não acontecia todo dia de feira! Igual muita gente que conhecia, não criou ambição de fazer mais bonecas. Não iria arriscar enchendo a banca de mercadoria e depois aquilo ficar empancado por semanas. Se bem que não era coisa de apodrecer. Tinha cabeça pra negócio. Sabia calcular riscos.
As companheiras vindas dos Morros gostavam de Rosa. Era das quatro mulheres naquele ponto da praça do Coronel Jonas, aquela que mais sabia das coisas. Conhecia e se dava com gente de dentro da rua, prefeito, professor esse e aquele, doutor, delegado. Sabia o que andava acontecendo na Parnaíba. As quatro mulheres passavam a manhã inteira naquele terror de sol falando alto, cumprimentando um conhecido, soltando uma brincadeira pra um compadre mais adiante.
E as bonecas ali enfileiradas no tabuleiro. Uma aqui de vestidos branco, outra de vestido azul, mais adiante era uma de vestido encarnado, de bolinhas miúdas, de blusas amarelas. Aqueles olhos das bonecas pintados, puxados e grandes como se estivessem assustadas com aquela gritaria dos homens que vendiam arroz, feijão, galinhas vivas, alpercatas, farinha branca e de puba, manjubas e tapiocas. As bonecas ficavam ali entre silenciosas e comportadas quando chegava uma mulher acompanhada da filha e apontava pra elas. A freguesa se admirava, comprava e pedia que a menina incontinenti desse um nome pra essa ou aquela.
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Às vezes comprava sem antes reclamar do preço. E lá ia a boneca de vestido de chita amarela com a menina, sua nova dona. As outras bonecas ficavam tristes porque perderam pra sempre uma colega de tabuleiro. Ninguém nunca mais iria saber dela, se estava bem cuidada, se a menina já em casa ousou trocar suas roupas ou com o tempo ficou esquecida dentro de uma gaveta, se foi jogada perto de algum gato e foi rasgada por ele. Mas era o destino das filhas de Rosa das Bonecas.
Rosa nunca parou um dia na vida pra pensar no que pensavam ou conversavam aos cochichos suas bonecas enquanto ela ia montando uma a uma ou quando na feira elas eram oferecidas pra alguém interessado. No fim da manhã de sábado ou no domingo ela e suas bonecas de pano tomavam o rumo de casa. Na semana, de segunda a sexta, outras bonecas mais magras, gordas, alegres e sisudas iriam se juntar na mesa de costura.
Nunca Rosa foi de calcular quantas filhas de pano foram feitas até aquele dia. Mas no Natal vendia muitas. As meninas vinham de todos os cantos de Parnaíba trazidas pelo pais ou a mães pra ver os presentes e as vitrines da Rosemary ou da Casa Cristino. Tudo era mágico naquela praça da Graça. As meninas tardavam o passo admiradas com tanta luz e beleza. Mas acabavam mesmo era ganhando uma boneca de pano feita pela Rosa das Bonecas.
(Conto extraído do livro Os Três Degraus)
Pádua Marques é escritor, cronista, contista, romancista e membro da Academia Parnaibana de Letras - cadeira 24.
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