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A Criatura das Trevas de Kiezär | Hatfa Fontenele


Ouvem-se uma história, sussurrada e espalhada ao vento tão levemente que só pode ser escutada por aqueles que prestarem atenção às vozes silenciadas ou por aqueles que estão desesperados o suficiente para abrir os ouvidos e escutar sem fugir de medo. A história de uma jovem em uma pequena cidade distante, tão aparentemente comum quanto qualquer outra localidade, mas que culminou em algo tão aterrorizante que precisou ser espalhada para todos que se habilitarem a ouvir. Eis o que os sussurros contam.

“A casa na qual eu cresci era de dois andares agora. Depois de um bom tempo longe durante a reforma do edifício, eu e minha mãe estávamos de volta ali, naquela cidade, um local tão afastado e desconhecido que tudo o que se podia esperar era a calmaria e línguas fofoqueiras. Isso foi há um mês atrás. Um mês de paz, tranquilidade e novela das 9h no sofá com ela, enquanto comemos pipoca amanteigada. Um mês de pura normalidade.

E então tudo virou de cabeça pra baixo.

Era um domingo como qualquer outro do mês de dezembro. O céu estava um pouco cinza, a promessa do inverno que estava por vir. Me levantei da cama, me arrumei e me encarei no espelho. Um rosto angular com olhos de um castanho profundo me encararam de volta. O cabelo ondulado caindo em cascatas pelos ombros. Desde criança, sempre ouvi falar que tenho os traços de minha mãe e tenho orgulho disso. Orgulho de levar comigo um pouco da mulher que sempre me deu forças quando eu precisei, que cantava canções de ninar para me fazer dormir, que cozinha coisas com o gosto de lar. Mas nunca me vi como ela. Sou de alguma forma mais cética, menos elegante e menos conhecedora do mundo. Ás vezes, olhar no espelho me parece amargo, porque também me lembra do quão longe eu estou de todas as melhores qualidades dela. Mas posso conviver com isso, desde que continuemos juntas.

Desci as escadas e segui em direção à cozinha, o lugar onde sempre a encontro todas as manhãs. Só que dessa vez estava vazia. A casa estava silenciosa, exceto por alguns resmungos em algum lugar mais adentro. Segui em direção ao quarto dela e a encontrei sentada na cama, de costas para a porta, remexendo em algumas caixas. Os ombros curvados, os movimentos frenéticos e tensos.

-  Mãe? Você precisa de ajuda?

Ela pula levemente de susto e então se vira bruscamente. Seus cabelos estão uma bagunça e as olheiras em seus olhos me dizem que ela não dormiu nada. A princípio pareceu não me reconhecer, até que soltou uma risada meio que de alívio.

-  Helena, meu bem, o que faz acordada a essa hora?


-  são 9 da manhã -respondo.

Seu sorriso se desfaz, como se tivesse lembrado de algo depois do susto passar, e então ela caminhou na minha direção, colocando a cabeça pela porta e olhando nervosamente para os lados. Rapidamente fechou a porta e me puxou até o outro lado da cama, me abaixando junto com ela. Depois de respirar fundo algumas vezes, ela sussurra:

-  Preciso que você preste atenção. Seu tom era sério agora. Preocupado.

-  O que houve? perguntei curiosa.

-   Eu nunca pensei que isso fosse acontecer com a gente, filha. Tomei todas as medidas possíveis desde que você era criança. - Ela parece um pouco perdida em pensamentos, e eu não entendi bem o que estava acontecendo. Comecei a me sentir impaciente.

-  Do que você está falando? o que aconteceu?

-  Minha prima, Beatrice.

Eu pisco uma vez. A prima da minha mãe é uma senhora corcunda e frágil de 72 anos. Uma semana atrás ela voltou a ocupar sua antiga casa no final da rua. Não cheguei a rever ela desde que voltou, mas sei que ela sempre foi alguém querida pela minha mãe, apesar de as duas terem uma diferença de idade de quase quatro décadas. Meu primeiro pensamento foi que ela tivesse tido alguma complicação de saúde ou algo pior.

-  Ela está bem? Teve outro AVC? - Pergunto com medo da resposta. Minha mãe balança a cabeça e eu solto um suspiro de alívio.

-  Não é isso - afirma ela - é algo pior. Ela é uma Kierkï agora.

Fico ainda mais estupefata. Perplexa. Não é possível que a gente esteja tendo essa conversa agora, sobre Kierkïs. Veja bem, diferente de outras crianças que crescem escutando as histórias do bicho papão e da mão cabeluda, eu cresci escutando sobre duas outras realidades diferentes, com seres ainda mais apavorantes. Os kierkïs eram os piores deles. Mas diferente das costumeiras histórias de terror, a questão nunca foi me dizer "não faça isso, senão os Kierkïs irão de pegar". Não. Minha mãe nunca precisou me educar dessa forma, nunca quis me dominar pelo terror, sempre foi apenas para que eu ficasse atenta às pessoas ao redor e me mantivesse em segurança.

Minha mãe acreditava em três realidades sobrepostas no nosso mundo. A nossa cotidiana é o primeiro extremo, aquela sob a vista de todas as pessoas comuns. É aonde nós vivemos.

Há também o Hægęr, uma espécie de limbo entre os dois extremos, dominado por reis Grotescos com características animais. Rato, Raposa, Cascavel e Aranha. Meio que difícil de acreditar que decisões sobre o que atravessa de um extremo até o outro seja decidido por eles, não é mesmo?


E por fim, há a última realidade, o outro extremo e o mais ameaçador. A Kiezär. Essa é uma realidade de opostos. Invertida. Dominada por uma criatura chamada de a Sem-face, pois nem seu rosto verdadeiro, ou nome verdadeiro, são conhecidos. É nessa realidade que surgem os Kierkïs.

Kierkïs, são criaturas sob o comando da Sem-face. É o que nós chamaríamos de "doppelganger" ou sósia do mal. Essas criaturas conseguem, com mais frequência, atravessar o véu que nos separa delas, rastejando para a luz do nosso Sol, quando os reis Grotescos não estão olhando. Seu único objetivo é se prender à alguém, como um espírito obsessor. Essas criaturas tentam sugar sua energia, te levar a tomar decisões erradas e a enlouquecer sozinho, inacreditado. Porque claro, quem acreditaria nesses seres na vida real?

Mas minha mãe acreditava que eles eram muito reais. A pior coisa dos Kierkïs é que eles surgem com rostos correspondentes à pessoas daqui, podendo se passar por qualquer um, até mesmo alguém que você conheça a vida toda. Um dia você simplesmente percebe que aquele alguém importante se tornou muito estranho de repente, e não nota que é algo preocupante até que ele se aproxima e te leva para longe para te matar. Não pra saber quem vai ser o próximo alvo desse ser obsessor ou quem vai viver sua vida inteira sem se deparar com uma situação como essa. Não para fugir dessa possibilidade, existem Kierkïs para cada pessoa no planeta. Cada um.

Quem não têm o conhecimento dessa realidade e desses seres, acaba se prejudicando ainda mais, porque não sabem que aquela pessoa, aquele familiar, aquele amigo...na verdade é falso. Um eco oco e sem vida. E quem tem conhecimento disso, como a minha mãe afirmava ter, acaba enfrentando ainda mais terror, porque essas criaturas buscam acabar com qualquer um que ouse se meter em seus caminhos. ‘E o que acontece com as verdadeiras pessoas que o kierkï substituiu?’. Bem, elas são capturadas e, segundo boatos, levadas até Kiezär, para a sua rainha sem rosto. O que acontece depois, ninguém sabe. Pois ninguém nunca retornou para contar a história.

Quer dizer, essas foram as histórias que ouvi desde criança, mas não acredito de verdade. Minha mãe afirma ser parte de um grupo seleto, formado por descendentes de pessoas que passaram essa crença de geração á geração, e por descendentes de pessoas que perderam entes queridos para os Kierkï e buscaram ajuda para se livrarem deles. Mas ela se mudou para longe desse grupo, quando eu ainda era criança, e não teve mais contato com eles. O motivo, eu nunca soube.

Tudo o que eu sabia era que agora eu estava encarando minha querida mãe, delirando sobre espíritos, monstros ou sei lá o quê mais. Me dói vê-la desse jeito. E eu começo a me perguntar se ela por acaso não está começando a dar os primeiros sinais de demência, a doença que assombrou o seu pai no passado, meu avô, até que ele morreu. Me pergunto se sua mente não a estava levando de volta para quando eu era criança e ela me contava essas histórias, misturando a realidade com a fantasia. Pensar nisso me deu vontade de chorar.


-  Mãe. - seguro delicadamente sua mão. Ela ainda parece um pouco perdida.

-  Cassandra -tento novamente e ela me olha nos olhos dessa vez- você precisa se lembrar do que é real. Eu sou real, sou sua filha. Você é real. Isso aqui é real.

-   faço um gesto apontando paras as coisas ao nosso redor. A cama ao nosso lado, o armário em suas costas, o quarto todo e os seus objetos. E continuo:

-  Mas o Kiezär não é real e não existem Kierkïs. Existe apenas nós e a sua prima é apenas a sua prima. Porque você não se deita na cama e descansa um pouco? Você parece cansada. - e isso era verdade. Ela realmente parecia muito tensa e cansada. As olheiras embaixo dos seus olhos estavam preocupadamente marcadas.

Ela suspirou. Meio que decepcionada, meio que esperando que eu dissesse isso. Ela olhou nos meus olhos e por um momento eles se suavizaram. Por um momento acreditei que ela faria como eu disse e se deitaria.

-   Minha querida, saiba que eu te amo muito. Agradeço a sua preocupação, mas eu estou bem. Também estou preocupada contigo, Helena. Espero que me perdoe.

Eu abri a boca para dizer que não tinha nada que eu precisasse perdoar, mas senti uma dor aguda no meu ombro. Olhei pra baixo e arquejei de surpresa. Tinha uma agulha enfiada no meu braço. Ela agora a retirava rapidamente dele, depois de ter inserido o conteúdo. Fiquei surpresa demais pra reagir, tentando entender aquela situação, até que meu corpo começou a ficar mais relaxado e a minha vista mais desfocada. O que aconteceu? O que tinha naquela seringa? O pavor começou a tomar conta de mim, completamente oposto ao relaxamento do meu corpo traiçoeiro. Ela me colocou nos braços e, curiosamente, me levou sem problemas até o carro na calçada.

-   Preciso te tirar daqui. Você precisa da proteção da... - não consegui escutar direito o que ela disse em seguida. Minha visão às vezes focava e outras vezes embaçava, meus sentidos estavam quase nulos. Mal senti quando ela me colocou no banco de trás, no lado da janela. E quando estávamos chegando ao fim da rua, por um momento achei ter visto a prima dela na calçada de sua casa, olhando para nós com um sorriso estático na boca. Não. Não tenho certeza. Talvez eu tenha sonhado, porque não sei ao certo de em que momento eu despenquei para o subconsciente e apaguei.

Acordei devagar, com meus sentidos voltando aos poucos, o efeito da droga se esvaindo. Quanto tempo se passou? 15 minutos? Uma hora? um dia inteiro? Difícil de se dizer. As árvores estavam passando rapidamente pelas janelas do carro, nos situando fora do ambiente urbano. Trovões ao longe traziam a promessa de uma chuva forte. O céu estava tão nublado e escuro que era quase impossível saber em qual hora do dia estávamos naquele momento.

Encarei disfarçadamente minha mãe no volante, tentando reconhecer a mulher brilhante e a alegre com a qual eu estava acostumada. Mas ali, sentada no banco do motorista, vi apenas uma mulher séria e pálida, alguém que talvez estivesse



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à beira de um surto ou uma crise mental. Se kierkïs fossem reais, eu acreditaria que um havia tomado o lugar da minha mãe. O seu olhar parecia tão frio agora, tão calculista. Mas não podiam ser reais, não é? não. Se fosse real, eu estaria morta, não estaria? Ou ela estava me levando para me enterrar no meio do nada? Não. Ela provavelmente estava tendo só um episódio de choque. Sua mente provavelmente sendo alterada pela ameaça de demência. Talvez por isso ela seguisse em alta velocidade. Para outra cidade. Sem sequer ter feito nossas malas ou avisado a ninguém. ‘Sem pânico’, eu disse a mim mesma. 


Ela finalmente percebeu que eu acordei, ao me encarar pelo retrovisor do carro.

-   Filha, sei que é difícil acreditar em mim. Sei mesmo. Mas, apesar de ter te contado algumas histórias na infância, te poupei de muitos detalhes sobre as dimensões que nos cercam. Sobre o perigo da Sem Face e sobre os lacaios dela. -disse ela com desgosto enquanto varria com seus olhos em todas as direções atrás de sinais de perigo.

Eu ainda estava um pouco zonza demais pra responder. Minha língua estava colada no céu da boca, seca como papel. Então apenas escutei, esperando que o meu cérebro voltasse ao normal para encontrar uma saída dessa situação.

-   Não é a toa que nos mudamos tantas vezes enquanto você crescia, sabe? Quando se pode ver além do olhar natural... quando se pode enxergar o sobrenatural, os riscos aumentam junto.-ela ri secamente- eu não pude perceber isso tão facilmente, tentei ignorar ao máximo, fingir que nós não fazíamos parte da linhagem mais suscetível a dar de cara com os kierkïs. Mas... então aconteceu. O incidente que tirou o seu pai de nós.

-    Mas... - eu quis argumentar. Quis dizer que o papai tinha morrido em um acidente de carro enquanto fazia uma entrega. Que não havia nada de especial nisso. Até que uma pequena parte do meu cérebro se recordou de algo. Não pudemos fazer um funeral apropriado com ele. O acidente foi real, o local ficou uma bagunça e o carro do meu pai estava estragado contra uma árvore. Passou no noticiário local, tudo isso quando eu tinha apenas 8 anos. Mas me lembro agora de um detalhe a mais. Algo que meu cérebro deve ter apagado por trauma daquele dia que foi o episódio nebuloso da minha vida. Tão carregado quanto as nuvens que estavam acima de nós duas agora, as gotículas de chuva começando a cair.

-  Não houve funeral- Eu percebi.

Ela balançou a cabeça concordando que não. Não um de verdade, recordo agora. Todos se reuniram em casa, vestidos de preto e sussurrando nervosamente coisas que não queriam que uma criancinha que acabou de perder o pai pudesse ouvir. Mas o mais esquisito é que não tínhamos o corpo para enterrar. Foi a única coisa faltando na cena do acidente. A polícia passou meses procurando, mas nunca o encontraram, apesar de ter tido sangue o suficiente no local para indicar que meu pai tinha morrido. Talvez ele tivesse andado pra fora do carro e caído no rio ali perto. Mas vasculharam o rio e nunca encontraram vestígio algum. Simplesmente não tinha nada.


-   Nada do que aconteceu com a gente foi normal. -continuou ela por cima do barulho da chuva batendo fortemente contra o carro. Um trovão soou mais perto dessa vez. - Somos perseguidas. Eu sempre senti isso, o nosso caso em especial. Mudamos de cidade várias vezes, sempre que eu notava algo estranho, porque eu queria te manter segura. Só que dessa vez eu não percebi tão rapidamente o perigo que se aproximou de nós até estar tarde demais. O olhar caçador está na minha prima. Ela já não é mais a Beatrice, aquilo é um kierkï.

Os cabelos da minha nuca se eriçaram. Um trovão soou ainda mais perto dessa vez. Era impressão minha ou eles estavam quase que ritmados, como um...bater de asas?

Olhei para trás e não enxerguei nada. A pista estava vazia. Não que desse pra enxergar muito naquela chuva, mas de alguma forma me senti mais tensa, mais urgente. E acho que a minha mãe também, porque ela estava prestes a falar alguma coisa quando algo se chocou com força no capô do carro.

Meu coração acelerou com a adrenalina enquanto o carro guinou até bater em uma árvore. A ironia disso não passou despercebida. Tudo girava e eu escutava apenas um zumbido agudo nos ouvidos, mas me esforcei pra sair do carro. Caí com tudo ao abrir a porta e encarei a cena. O capô do nosso carro estava achatado contra uma árvore. E em cima dele, estava uma criatura que mais parecia um demônio. O rosto era distorcido, com um buraco no lugar da boca cheio de dentes afiados. E os olhos...pretos, sem mais nada. Pura escuridão. Asas tão grandes e horrendas que pareciam saídas de um filme de terror. O pescoço da criatura tremeu quando ela olhou lentamente na minha direção. E eu soube. Simplesmente soube que ela estava se passando pela prima da minha mãe, mas que era algo totalmente diferente. Um kierkï com sede de sangue. E estava apenas a um metro de distância da minha garganta.

Eu não pude fazer nada, paralisada de tanto horror. Até que a porta do motorista se abriu e a minha mãe se arrastou de lá. Ela tinha filetes de sangue caindo um ferimento na sua cabeça. Quando ela olhou pra mim, eu soube que ela estava apavorada, não por ela mesma. Por mim. Ela me disse apenas uma palavra, CORRA. E então abriu um bastão extensível que ela tinha conseguido anos atrás em uma venda de garagem, lançou na direção da criatura e soltou um grito gutural. E então eu corri. Obedeci o seu comendo. Fui o mais rápido que eu pude, sendo encharcada pela chuva. O frio congelando os meus ossos. Corri e corri, mas continuava a sentir que não estava longe o bastante, que não estava rápida o bastante, que não conseguia sair do lugar. Tropecei e caí em um morro ao lado da pista, engolindo terra e lama. Sendo rasgada pedaço por pedaço, por raízes galhos e pedras. Até que eu cheguei ao fim do declive.

E quando eu abri os olhos, a criatura estava lá. Seus olhos sem órbita me encarando. Eu gritei e me arrastei pra longe. Implorei pra não ser levada. Mas algo pior do que a minha morte aconteceu. Escutei um barulho como algo caindo. Acima de mim. Eu olhei para cima e me deparei com a minha mãe pendurada por uma corda. O seu rosto deformado. Um véu de sangue a cobrindo das cabeças aos pés. E então eu senti desespero de verdade.


Senti tanto terror que achei que meu coração não aguentaria e eu morreria. Mas ele aguentou e o terror nunca terminou. Eu me arrastei, gritei e me debati. Tentei não ligar para aqueles barulhos esquisitos e macabros por todos os lados. Folhas farfalhando, o vento sussurrando, os gritos da criatura que mais pareciam rir do meu terror. O fato de que eu não sabia que direção seguir. De que não havia ninguém por perto pra ajudar. De que não adiantaria ter ninguém. De que eu tinha perdido a única pessoa que me restava.

Eu continuei respirando aquele pavor. Por uma eternidade, parecia ser a única coisa que eu conhecia. A criatura lentamente se debruçou sobre mim, como se estivesse aproveitando cada gosto daquilo. Como se o meu medo a alimentasse. Até que ela perfurou meu coração, pintando tudo de vermelho. Paralisada naquela floresta, enquanto o sangue inundava os meus pulmões, tendo como única companhia aquela criatura horrenda e o seu olhar opressivo a centímetros do meu rosto, desejei estar aninhada nos braços da minha mãe. A forma como aquela criatura me estraçalhou vai além de qualquer descrição. Imagine o pior cenário possível e tenha certeza de que foi mil vezes pior. O tempo não pareceu passar até que parou de vez, e qualquer esperança que eu já tive se apagou. Foi assim que eu morri.

Ouvi boatos, desse lado do plano. O lado daqueles que vagam por não terem tido sentido em vida ou na morte. Boatos de que os vivos ainda podiam escutar os meus gritos. Então me perguntei se eles também não poderiam escutar a minha história. Por isso, sussurrei e confiei ao vento para entregar esse aviso. Apareci nos sonhos dos marinheiros e dos pescadores. Inspirei poetas e escritores. Porque a minha morte não foi a coisa mais assustadora.

Se os vivos ao menos soubessem quantos desses seres estão ao seu redor. Quantas das pessoas que eles mais amam e confiam os apunhalariam pelas costas na primeira oportunidade. Se soubessem que aqueles poucos que conhecem a verdade estão pouco a pouco morrendo, diminuindo a quantidade de defensores que impedem os kierkïs de se espalhar por todo o mundo. Se os vivos ao menos soubessem...bom, tem coisas que eu descobri depois da morte, sobre essas diversas realidades, que eu não posso mais falar sobre. Mas se soubessem dos perigos sobrenaturais que os cercam a cada esquina...que cada folclore local escondia certa verdade, como a mão cabeluda e o Crescedor... então eles desejariam morrer de medo. Porque uma parada cardíaca seria um destino muito mais misericordioso do que o encontrado por aqueles que enfrentam as garras dos Kierkïs. Como eu.”

Fim.


*Conto vencedor do 1º Concurso Literário de Terror organizado pelo Clube Literário de Chaval e patrocinado pelo Chavalzada na categoria II (ensino médio) Hatfa Fontenele é aluna da Escola Monsenho José Carneiro da Cunha. Saiba mais AQUI

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