Bom dia estimados amigos leitores. De volta a nossa série "Poesia de Quinta" para apresentar o poema "Autopsicografia" do português Fernando Pessoa. Escritor e poeta, Fernando Pessoa é considerado, ao lado de Luís de
Camões, o maior poeta da língua portuguesa e um dos maiores da
literatura universal. O crítico literário Harold Bloom afirmou que a
obra de Fernando Pessoa é o legado da língua portuguesa ao mundo.
O poema Autopsicografia, de Fernando Pessoa, apresenta uma rica
possibilidade de interpretação e se encaixa, sobremaneira, no estudo do
tema Teoria da Literatura. Ao abordar o processo da criação poética, o
texto especula sobre os vários planos de significante e significado,
enaltecendo a característica de linguagem cifrada que é, para alguns
autores, a definição mesmo de literatura (ou de linguagem literária ou
poética).
No poema de Pessoa, esses planos se sucedem num sentido de expansão do
mais particular (a dor específica do poeta) para o mais genérico ou
universal (a própria vida, em sua relação entre razão e coração). Na
primeira estrofe, Pessoa estabelece os dois planos iniciais, o da dor
que o poeta “deveras sente” e o da dor que ele finge. O primeiro é o
plano do real, do factual, aquele que existe ou ocorre independente da
vontade. O segundo plano é o da representação, da narração do fato, de
sua transformação em linguagem, em obra poética. Nessa estrofe, à
semelhança com o que Borges faz com tanta freqüência1, Pessoa compara a
transfiguração poética ao fingimento, à falsificação, deixando implícito
que a linguagem poética não tem compromisso com a verdade ou com a
realidade, mas apenas (conforme enaltece Jakobson na sua Teoria da
Comunicação) com a própria poesia. Ou seja, há um compromisso não
factual, mas antes de tudo estético e figurativo.
Na segunda estrofe, Pessoa repete a mesma relação dicotômica entre fato e
interpretação, mas agora num plano além do da produção poética. Ele
explora o plano do leitor, daquele que entra em contato não com a dor
real do poeta, mas com a dor representada. Só que, segundo Pessoa, ao
ler a representação do poeta, o leitor não apreende a dor real nem a dor
“fingida”, mas uma terceira que é a sua própria decodificação da
representação literária. Mas Pessoa não para aí! Vai mais além e
constrói um quarto plano, no qual essa interpretação de quem lê é ainda
distinta daquela que seria a dor do próprio leitor, dor esta que, por
estar diante de uma produção literária, ele em realidade não tem.
Na terceira estrofe, Pessoa repete a relação entre realidade e
representação, desta vez num nível genérico, universal. Nesta estrofe
ele fala não do indivíduo particular que produz o poema nem de um
conjunto de indivíduos (os leitores) que entram em contato com a obra,
mas da vida mesmo. A relação entre “real” e “fingido” é substituída pela
relação entre “razão” e “coração”, e são utilizadas as metáforas calha
de roda e comboio de corda. A primeira, calha de roda, nos remete a um
instrumento útil, prático, cotidiano, que produz trabalho, que gira
interminavelmente, preso a um mesmo eixo, sempre retornando ao mesmo
ponto, numa figuração da rotina da vida, das obrigações, dos horários e
compromissos a serem cumpridos, das tarefas diárias e repetitivas. Já
comboio de corda é um brinquedo, uma construção criativa que já é uma
representação no seu significado inicial (não uma porção de pedaços de
cordas amarrados, mas um comboio), e cujas possibilidades referenciais
vão muito além. É ele o lado lúdico, criativo, afetivo, emocionante,
aquele “outro” que se projeta de nossos sonhos, de nossas aspirações
mais íntimas, mais profundas.
Assim, se utilizarmos o código referencial mais direto, podemos
interpretar Autopsicografia como a explicitação do eu poético (baseado
na sua própria experiência, como estabelece o título do poema) de como
se dá o processo de criação literária, como se processa a interpretação
dessa produção por parte do leitor e como esse processo se repete na (ou
reflete a) própria vida, num repetido jogo de duplos, em distintos
planos, entre o real e o imaginário, entre a razão e a emoção.
Autopsicografia
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Sobre o Autor (Fernando Pessoa)
Fernando Pessoa nasceu em Lisboa, em junho de 1888, e morreu em novembro de 1935, na mesma cidade, aos 47 anos, em consequência de uma cirrose hepática. Sua última frase foi escrita na cama do hospital, em inglês, com a data de 29 de Novembro de 1935: “I know not what tomorrow will bring” (Não sei o que o amanhã trará).
Seus poemas mais conhecidos foram assinados pelos heterônimos Álvaro de
Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro, além de um semi-heterônimo,
Bernardo Soares, que seria o próprio Pessoa, um ajudante de
guarda-livros da cidade de Lisboa e autor do “Livro do Desassossego”,
uma das obras fundadoras da ficção portuguesa no século 20. Além de
exímio poeta, Fernando Pessoa foi um grande criador de personagens. Mais
do que meros pseudônimos, seus heterônimos foram personagens completos,
com biografias próprias e estilos literários díspares. Álvaro de
Campos, por exemplo, era um engenheiro português com educação inglesa e
com forte influência do simbolismo e futurismo. Ricardo Reis era um
médico defensor da monarquia e com grande interesse pela cultura latina.
Alberto Caeiro, embora com pouca educação formal e uma posição
anti-intelectualista (cursou apenas o primário), é considerado um
mestre. Com uma linguagem direta e com a naturalidade do discurso oral, é
o mais profícuo entre os heterônimos. São seus “O Guardador de
Rebanhos”, “O Pastor Amoroso” e os “Poemas Inconjuntos”. Em virtude do
tamanho, alguns poemas tiveram apenas trechos publicados.
Fonte: Poemas e Pensamentos / Revista Bula
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