Maquiavel, Galileu, Kepler, Descartes, Voltaire, Victor Hugo,
Jean-Paul Sartre. O que pensadores, cientistas e escritores de épocas
tão diferentes têm em comum? Esses são apenas alguns dos autores
incluídos no Index Librorum Prohibitorum, da Igreja Católica, a maior e
mais influente lista de livros proibidos da História. O índice vigorou
por mais de 400 anos, entre 1559 e 1966 - baniu títulos "imorais" e,
principalmente, contrários aos pontos de vista da doutrina cristã. Até o
século 18, quando o índice já perdia influência, leitores que ousassem
possuir as obras vetadas corriam o risco de ser julgados pelos Tribunais
da Inquisição como hereges. Para os autores, as penas eram mais graves.
Que o diga o teólogo Giordano Bruno, executado na fogueira em 1600.
Tentativas
de controlar a informação aparecem na História desde a Antiguidade. Na
Grécia e em Roma, políticos e sacerdotes se preocupavam com o que a
população deveria, ou não, pensar. Sócrates, no século 4 a.C., foi
obrigado a tomar cicuta, entre outros motivos, por "corromper a
juventude" ao defender ideias como atribuir ao reconhecimento da
ignorância a base da sabedoria. Na era cristã, a seleção dos evangelhos
que entrariam na Bíblia já demonstra o esforço da Igreja em moldar a
doutrina. Os concílios de Niceia e Roma, no século 4, foram decisivos,
assim como decretos papais posteriores. Textos como o Evangelho de Tomé
(hoje tido por muitos especialistas como o mais antigo) e o de Judas
passaram a ser considerados apócrifos. "A decisão sobre o que seria
incluído ou não era política", diz André Barroso, professor de História
da Religião e Filosofia da Unicamp. "O Evangelho de João, por exemplo,
quase ficou de fora. Mas como seria muito estranho colocar as Cartas de
João (que os padres aprovavam) e não reconhecer seu evangelho, ele
acabou passando." A própria Bíblia menciona o expurgo de publicações. O
Atos dos Apóstolos (19:19) cita uma fogueira de livros de "magia",
trazidos por cristãos recém-convertidos, avaliados em "50 mil peças de
prata". Um decreto do papa Gelásio I do fim do século 5 é tido como uma
espécie de precursor do Index.
Por vários séculos, porém, a Igreja não precisou formalizar as proibições. Na Idade Média, a maioria da população era analfabeta, e os livros, raríssimos. Os exemplares eram reproduzidos a mão por monges. O latim, língua exclusiva às obras até o século 16, era dominado apenas por clérigos e um ou outro nobre. A partir da prensa de Johannes Gutenberg, porém, a coisa muda de figura. Não por acaso, o primeiro livro que ele imprimiu foi a Bíblia (em latim), em 1455. Em pouco tempo, a capacidade das prensas era de 3,6 mil páginas impressas por dia. Muito mais do que permitiam técnicas anteriores ou as mãos calejadas dos monges copistas. A novidade se espalhou com rapidez e, em 1500, os equipamentos da Europa Ocidental já produziam mais de 20 milhões de exemplares.
A oferta (que já não se limitava ao latim) alimentava a procura. E disparou o sinal amarelo dos governos constituídos, que passaram a regulamentar a atividade das gráficas. Na Londres de meados do século 16, o trabalho de impressão foi restrito a duas universidades e às 21 prensas já existentes na cidade. Na França, em 1546, o gráfico Etienne Dolet foi queimado, acusado de disseminar o ateísmo.
Com a Reforma protestante, iniciada por Martinho Lutero, em 1517, a Igreja cai em xeque. Teólogo respeitado, quando abandona o catolicismo, Lutero traz consigo quase todo o clero da Alemanha. Para que a manobra desse certo, porém, era preciso mobilizar a população a seu favor. Assim, ele traduz a Bíblia para o alemão e converte a edição das Escrituras em idiomas locais numa bandeira protestante. As versões ajudaram a alfabetizar muitos fiéis. Antes disso, nem o baixo clero tinha acesso aos textos sagrados. "Era o que a Igreja temia: que novos cismas pudessem acontecer no seio da religião", diz André. É no contexto da Contra-Reforma, portanto, que surge o primeiro Index Librorum Prohibitorum. Em 1559, o papa Paulo IV vetou cerca de 550 obras e seus autores. Listas do tipo já haviam aparecido nos Países Baixos, em Veneza e em Paris, mas foi mesmo com o Index que a censura deslanchou. Até para os católicos, porém, o primeiro índice foi considerado muito restritivo. Uma nova versão, o Index Tridentino (mais liberal), foi lançada em 1564. Essa relação foi a base para as futuras edições até 1897, quando Leão XIII definiu o Index Leonino. Cada papa podia "emendar" a lista, mas as citadas acima tiveram maior destaque.
O primeiro alvo dos vetos, claro, foram Lutero e outros teólogos protestantes. A partir de 1571, foi criada a Sagrada Congregação do Índex, encarregada de avaliar os livros denunciados em Roma. Além de proibir autores, a comissão sugeria correções para certas obras, que poderiam ser publicadas se ajustadas. Nietzsche e vários autores ateus acabaram de fora da relação: desde o Index Tridentino, obras notadamente heréticas, que contrariavam o dogma católico, eram proibidas por definição, sem necessidade de reafirmar isso na lista.
A Igreja adotou ainda uma forma de censura prévia: o imprimatur. Quem quisesse ter o aval da instituição podia submeter seus livros ao bispo, que recomendava (ou não) a publicação, na íntegra ou com alterações. Na primeira página ou na capa, vinha o selo de imprimatur (do latim, "deixem ser impresso"). Mecanismo similar foi utilizado por outras igrejas, como a Anglicana. Isaac Newton, por exemplo, teve de pedir autorização ao arcebispo de Canterbury para publicar seus Princípios da Matemática.
Nos primeiros séculos de atuação, o Index e a Inquisição se complementavam. Alguns processos admitiam direito de defesa e outros corriam de forma sumária. Uma retratação pública, eventualmente, poderia evitar penas mais duras. Galileu recuou da defesa do heliocentrismo e escapou da morte. No século 19, esse deixou de ser um dogma, e as obras do italiano saíram do Index. Também a freira Faustina Kowalska, que escreveu sobre as visões que tivera de Jesus e Maria, foi reabilitada. Seu relato, proibido em 1959, permaneceu assim por 20 anos, mas acabou liberado... Ela foi canonizada em 2000.
Decadência
Entre os séculos 18 e 19, os regimes absolutistas perdem terreno na Europa, na esteira da Revolução Francesa. Diante do Iluminismo, a Igreja também enfrenta resistência. Autores como David Hume e Denis Diderot são vetados, mas, na prática, o Vaticano perde poder para impor a censura. Em 1917, a Congregação do Índex é incorporada ao Santo Ofício. Lá, a lista permaneceu até 1965, quando após nova mudança de nome, nasce a Congregação para a Doutrina da Fé. No ano seguinte, o Index foi extinto - já não era atualizado desde 1948. A última edição alcançou 4 mil títulos. "A Igreja não fez uma retratação. Ela reconheceu que o mundo mudou", afirma André Barroso. Ou seja, tais livros ainda são "perigosos", mas a legislação canônica não trata mais do tema. Autoridades do clero ainda hoje podem emitir um admonitum, advertência sobre os riscos de determinada obra (seja qual for a mídia). Foi o que aconteceu quando Dan Brown lançou o Código Da Vinci, em 2003, ficção que atacava a Opus Dei.
Se a Igreja Católica deixou de listar títulos indesejados, nem de longe isso significa o fim da censura. A perseguição pode ser comum em outras religiões - Salman Ruhsdie passou a ser ameaçado de morte por fundamentalistas islâmicos depois de publicar Os Versos Satânicos, em 1989 - e mesmo governos democráticos usam brechas legais para conter informações indesejadas. Sem mencionar a pressão política e financeira. De qualquer forma, na era da internet, é tarefa cada vez mais difícil controlar a informação.
A portas fechadas
Como eram avaliadas as obras
Longe dos olhos do público, os membros do clero tinham debates acalorados sobre o que deveria ou não ser incluído no Index. O trabalho começava com uma denúncia: os católicos podiam sugerir livros que achassem "perigosos". Dois consultores eram nomeados para analisar cada obra. Suas conclusões eram então apresentadas aos cardeais da Congregação do Índex, em seus três ou quatro encontros anuais. Um relatório da discussão era produzido e submetido à aprovação do papa. Pesquisadores que tiveram acesso a esses relatórios, abertos pelo Vaticano nos anos 1990, estimam que o número de livros denunciados e investigados pela Igreja era pelo menos o dobro dos que efetivamente foram proibidos. O Mein Kampf, de Adolf Hitler, analisado por três anos, acabou "inocentado"
Por vários séculos, porém, a Igreja não precisou formalizar as proibições. Na Idade Média, a maioria da população era analfabeta, e os livros, raríssimos. Os exemplares eram reproduzidos a mão por monges. O latim, língua exclusiva às obras até o século 16, era dominado apenas por clérigos e um ou outro nobre. A partir da prensa de Johannes Gutenberg, porém, a coisa muda de figura. Não por acaso, o primeiro livro que ele imprimiu foi a Bíblia (em latim), em 1455. Em pouco tempo, a capacidade das prensas era de 3,6 mil páginas impressas por dia. Muito mais do que permitiam técnicas anteriores ou as mãos calejadas dos monges copistas. A novidade se espalhou com rapidez e, em 1500, os equipamentos da Europa Ocidental já produziam mais de 20 milhões de exemplares.
A oferta (que já não se limitava ao latim) alimentava a procura. E disparou o sinal amarelo dos governos constituídos, que passaram a regulamentar a atividade das gráficas. Na Londres de meados do século 16, o trabalho de impressão foi restrito a duas universidades e às 21 prensas já existentes na cidade. Na França, em 1546, o gráfico Etienne Dolet foi queimado, acusado de disseminar o ateísmo.
Com a Reforma protestante, iniciada por Martinho Lutero, em 1517, a Igreja cai em xeque. Teólogo respeitado, quando abandona o catolicismo, Lutero traz consigo quase todo o clero da Alemanha. Para que a manobra desse certo, porém, era preciso mobilizar a população a seu favor. Assim, ele traduz a Bíblia para o alemão e converte a edição das Escrituras em idiomas locais numa bandeira protestante. As versões ajudaram a alfabetizar muitos fiéis. Antes disso, nem o baixo clero tinha acesso aos textos sagrados. "Era o que a Igreja temia: que novos cismas pudessem acontecer no seio da religião", diz André. É no contexto da Contra-Reforma, portanto, que surge o primeiro Index Librorum Prohibitorum. Em 1559, o papa Paulo IV vetou cerca de 550 obras e seus autores. Listas do tipo já haviam aparecido nos Países Baixos, em Veneza e em Paris, mas foi mesmo com o Index que a censura deslanchou. Até para os católicos, porém, o primeiro índice foi considerado muito restritivo. Uma nova versão, o Index Tridentino (mais liberal), foi lançada em 1564. Essa relação foi a base para as futuras edições até 1897, quando Leão XIII definiu o Index Leonino. Cada papa podia "emendar" a lista, mas as citadas acima tiveram maior destaque.
O primeiro alvo dos vetos, claro, foram Lutero e outros teólogos protestantes. A partir de 1571, foi criada a Sagrada Congregação do Índex, encarregada de avaliar os livros denunciados em Roma. Além de proibir autores, a comissão sugeria correções para certas obras, que poderiam ser publicadas se ajustadas. Nietzsche e vários autores ateus acabaram de fora da relação: desde o Index Tridentino, obras notadamente heréticas, que contrariavam o dogma católico, eram proibidas por definição, sem necessidade de reafirmar isso na lista.
A Igreja adotou ainda uma forma de censura prévia: o imprimatur. Quem quisesse ter o aval da instituição podia submeter seus livros ao bispo, que recomendava (ou não) a publicação, na íntegra ou com alterações. Na primeira página ou na capa, vinha o selo de imprimatur (do latim, "deixem ser impresso"). Mecanismo similar foi utilizado por outras igrejas, como a Anglicana. Isaac Newton, por exemplo, teve de pedir autorização ao arcebispo de Canterbury para publicar seus Princípios da Matemática.
Nos primeiros séculos de atuação, o Index e a Inquisição se complementavam. Alguns processos admitiam direito de defesa e outros corriam de forma sumária. Uma retratação pública, eventualmente, poderia evitar penas mais duras. Galileu recuou da defesa do heliocentrismo e escapou da morte. No século 19, esse deixou de ser um dogma, e as obras do italiano saíram do Index. Também a freira Faustina Kowalska, que escreveu sobre as visões que tivera de Jesus e Maria, foi reabilitada. Seu relato, proibido em 1959, permaneceu assim por 20 anos, mas acabou liberado... Ela foi canonizada em 2000.
Decadência
Entre os séculos 18 e 19, os regimes absolutistas perdem terreno na Europa, na esteira da Revolução Francesa. Diante do Iluminismo, a Igreja também enfrenta resistência. Autores como David Hume e Denis Diderot são vetados, mas, na prática, o Vaticano perde poder para impor a censura. Em 1917, a Congregação do Índex é incorporada ao Santo Ofício. Lá, a lista permaneceu até 1965, quando após nova mudança de nome, nasce a Congregação para a Doutrina da Fé. No ano seguinte, o Index foi extinto - já não era atualizado desde 1948. A última edição alcançou 4 mil títulos. "A Igreja não fez uma retratação. Ela reconheceu que o mundo mudou", afirma André Barroso. Ou seja, tais livros ainda são "perigosos", mas a legislação canônica não trata mais do tema. Autoridades do clero ainda hoje podem emitir um admonitum, advertência sobre os riscos de determinada obra (seja qual for a mídia). Foi o que aconteceu quando Dan Brown lançou o Código Da Vinci, em 2003, ficção que atacava a Opus Dei.
Se a Igreja Católica deixou de listar títulos indesejados, nem de longe isso significa o fim da censura. A perseguição pode ser comum em outras religiões - Salman Ruhsdie passou a ser ameaçado de morte por fundamentalistas islâmicos depois de publicar Os Versos Satânicos, em 1989 - e mesmo governos democráticos usam brechas legais para conter informações indesejadas. Sem mencionar a pressão política e financeira. De qualquer forma, na era da internet, é tarefa cada vez mais difícil controlar a informação.
A portas fechadas
Como eram avaliadas as obras
Longe dos olhos do público, os membros do clero tinham debates acalorados sobre o que deveria ou não ser incluído no Index. O trabalho começava com uma denúncia: os católicos podiam sugerir livros que achassem "perigosos". Dois consultores eram nomeados para analisar cada obra. Suas conclusões eram então apresentadas aos cardeais da Congregação do Índex, em seus três ou quatro encontros anuais. Um relatório da discussão era produzido e submetido à aprovação do papa. Pesquisadores que tiveram acesso a esses relatórios, abertos pelo Vaticano nos anos 1990, estimam que o número de livros denunciados e investigados pela Igreja era pelo menos o dobro dos que efetivamente foram proibidos. O Mein Kampf, de Adolf Hitler, analisado por três anos, acabou "inocentado"
Fonte: Guia do Estudante
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