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O trem de brinquedo do menino que comia barro | por Pádua Marques


O menino voltou pra dentro de casa e foi direto até a cozinha onde estava a mãe remexendo umas vasilhas indo depois lavar na cacimba. O apito do trem ainda se escutava longe ganhando a linha no rumo da Parnaíba. Chegou perto de dona Raimunda e foi se metendo, se enroscando feito uma cobra entre as suas pernas, puxando o vestido dela, mas não disse nada. Assim era quando queria alguma coisa. E cada vez mais longe o trem ganhava ligeireza e pelos cálculos dali a pouco haveria de chegar ao seu destino. 

Assim acabava mais um dia de encantamento pra Duquinha e Luzia naquele fim de mundo do Videl com suas poucas casas na beira da linha entre Parnaíba e a Piracuruca. A irmã tinha uns onze pra doze anos e ele, coisa de menos, sete. Tanto que ainda estava trocando os dentes. Os dois naquela casa eram os assim ditos, sobejos, dos cinco filhos de seu Duca Pereira com dona Raimunda. Os outros três filhos morreram ainda anjos, longe de tudo. De tudo que era lugar onde tinha gente como a Parnaíba. Quando morreram foram enterrados ali mesmo, quase no fundo do quintal sem muita cerimônia. 

Enquanto a mãe dona Raimunda foi lavar uns copos na beira da cacimba lá no fundo do barranco, a menina se aproveitando de mais ninguém dentro de casa, correu a mão numa lata onde se guardava açúcar e colocou duas colheres pra depois ir até o caixão de farinha branca onde colocou duas mãos cheias no copo. Voltou pra frente de casa e ficou olhando o tempo, comendo aquilo e olhando o movimento de algum passarinho, o correr dos calangos ou algum jumento vindo atrás de grama na frente de casa. Luzia gostava de comer farinha com açúcar. 

Até que de vez em quando dava um pouco pra o irmão, contando com que ficasse quieto ali ao lado dela na passagem do trem vindo da Piracuruca. Mas ele ficava pouco naquela espera mais besta e longa. Tinha vez e hora que sumia pra detrás de casa e naquele silêncio, naquele sumiço de dar medo ia comer barro. Dona Raimunda não gostava de ver a menina comendo farinha com açúcar. Xingava Luzia, cobria de coques e de nomes feios. Ameaçava levar pra casa de padre Roberto em Parnaíba, pra levar beliscão o tempo inteiro. 

Dizia que farinha com açúcar chamava lombriga. A menina depois de levar carão saía desconfiada e ia resmungar sentada num tronco de pau na frente de casa. Só brigava com ela, só brigava com ela! E aquele cão de Duquinha? Comia barro detrás de casa e ela não dizia nada! Barro era capaz de dar também lombriga nele! Era barro que fazia Duquinha ficar com aquele bucho grande. Mas era naquele lugar afastado do Videl, aquele lugar de meter medo, que Luzia inventou uma brincadeira. 

Toda vez que o trem vinha descendo de Piracuruca pra Parnaíba, era dela Luzia. Toda vez que o trem vinha de Parnaíba, subindo pra Piracuruca, era de Duquinha. Quando o trem parava na estação pra deixar ou embarcar algum conhecido, os dois ficavam ali olhando, se admirando de tudo. Algum conhecido que ia pra Parnaíba ver algum negócio, fazer compras, se consultar na Santa Casa. Outro ali mais adiante levando um porquinho capado, um saco de pequi, tapiocas, milho verde, uma ou três franguinhas de primeira pena pra agradar uma comadre em Parnaíba. Ou alguém chegando pra visitar um parente antes esquecido no Videl. Duquinha e a irmã Luzia passaram a ter naquele bicho de ferro e queimando pau de lenha, um brinquedo de dois em dois dias. 

Mas teve um dia que seu Duca foi pra Parnaíba e na volta veio com o pedido da madrinha de Luzia, dona Rita, mulher do magarefe Pedro Castanha. Queria porque queria que a menina fosse morar com ela. O único filho havia ido embora pra o Pará e já casado levou uma netinha que era sua alegria dentro de casa. Dona Rita estava sozinha agora. O marido tinha o serviço dele de cortar boi, porco e carneiro na Guarita. Luzia haveria de ser uma boa companhia pra ir com ela na igreja de São Sebastião nos Campos. 

A promessa da madrinha era de que Luzia iria pra o catecismo fazer primeira comunhão, ia ganhar vestido e calçado, ia primeiro desasnar em casa e depois ia botar numa escola perto de casa, com gente de confiança, pra mais lá na frente dar alguma coisa na vida. E assim um dia de trem e tendo os cuidados de seu Luís, o maquinista, Luzia foi embora pra Parnaíba. A mãe dona Raimunda foi só de balançar a cabeça e agradecer os cuidados daquele homem com a filha ainda uma menina. Lembranças pra comadre Rita. Quando ela ou o pai pudessem iam ver a menina, levar uns agrados!

Dias e meses passados e de vez em quando dona Rita mandava alguma coisa boa de Parnaíba pra comadre Raimunda, o menino e o compadre seu Duca. Dessa vez foi um lampião, comprado no seu Antonio Tomás, umas três canecas de louça, um corte de brim. Luzia estava bem. Mandava lembranças, era quieta, já ajudava em casa, na cozinha e varria a porta de casa. Iam as duas pra igreja. Gostava de conversar sobre as coisas do Videl e de vez em quando falava do irmão. 

Um dia seu Luís, o maquinista, veio pra dizer que havia um ocorrido muito triste na Parnaíba. A casa de Pedro Castanha e de outros moradores da Guarita tinha pegado fogo porque umas brasas voaram da chaminé do trem e foram justo cair em cima das casas de palha. Foi uma coisa horrível, de cortar coração. Aquele sofrimento de gente correndo atrás de água pra apagar o fogo naquele meio de tarde. Até dos potes se pegou água. As casas viraram cinzas assim num esfregar de olho e os coitados perderam tudo. Ficaram com a roupa do corpo. Mas não houve mortes nem feridos.

Foi o bastante pra Duquinha ficar escutando tudo lá de seu canto enquanto seu Luís contava o que havia ocorrido na Parnaíba. Agora era saber os estragos e procurar a Estrada de Ferro Central do Piauí pra pagar os prejuízos. Tinha gente correndo atrás dos ricos, doutor Mirócles, doutor Cândido, seu Roland Jacob e seu Zeca Correia, pedindo barro, madeira pra ripas e caibros. O menino agora sem a irmã por perto, a menina boa com quem até pouco comia farinha com açúcar e brincava de esperar o trem vindo de Piracuruca ou da Parnaíba, nunca mais quis ver aquele cão de ferro.

(*) Pádua Marques, cadeira 24 da Academia Parnaibana de Letras é  jornalista, romancista e contista. 






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