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Iemanjá, a divindade africana que ganhou feição branca no Brasil

RAFAEL MARTINS/AFP VIA GETTY IMAGES

Iemanjá, divindade cuja data é celebrada em 2 de fevereiro, é a rainha das águas e, acreditam os que a cultuam, a figura materna que irmana todas as pessoas.

Em terras brasileiras — ou seja, nas práticas religiosas trazidas por africanos na diáspora forçada durante os séculos de regime escravagista e tráfico de mão de obra compulsória —, o orixá feminino ganhou ainda um significado que remete à ancestralidade.

Afinal, se entendermos as costas brasileira e do continente africano como duas margens do mesmo imenso rio, o Oceano Atlântico, é Iemanjá quem promove a união, por ser ela a divindade das águas.

"Iemanjá é a representação da grande mãe da tradição iorubá", explica o sociólogo, antropólogo e babalorixá Rodney William Eugênio, doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

"Seu nome vem da expressão 'a mãe dos peixes' ou 'a mãe cujos filhos são como peixes'. É considerada a mãe de todos, a que nos prepara para a vida, nos dá a imensidão das águas para que possamos realizar todas as potencialidades", afirma Eugênio. Na língua original, seu nome é Yemoja.

Contudo, atualmente há uma aparente contradição que se torna evidente: se a divindade é originalmente negra, por que sua representação mais comum em terras brasileiras é uma mulher branca?

A resposta estaria na violência do processo de sincretismo, muitas vezes romantizado como algo inerente à chamada "democracia racial".

Dos rios para o mar

Para os que creem na divindade, ela tem a propriedade de "comandar as cabeças", reger o domínio da consciência.

"Na tradição iorubá, dizem que a cabeça carrega o corpo, então, é ela quem traz o equilíbrio emocional e psíquico", prossegue o babalorixá Eugênio.

"Yemoja é a mãe de todas as águas. Se existe água, existe Yemoja, se nós existimos é porque Yemoja existe. Não há uma cabeça que Yemoja não tocou e cuidou. e não há uma cabeça que Yemoja não possa tocar e cuidar", diz a estudiosa do tema Yasmin Fernandes Sales dos Santos, psicóloga e mestre em sociologia política.

"Iemanjá é um orixá, ou seja, uma divindade africana cultuada a partir do panteão divino dos povos iorubás. Embora, no Brasil, assuma títulos e características de 'rainha do mar', na África, é cultuada na região de Abeokutá, na Nigéria, onde seus cultos se estabeleceram inicialmente nas águas doces do rio Yemoja, entre Ifé e Ibadan", contextualiza o sacerdote de umbanda David Dias, pesquisador em ciência da religião na PUC-SP.

Ou seja: para os iorubás, ela é a divindade dos rios. Essa transposição para os mares é resultado do movimento de diáspora quando, já nos chamados navios negreiros, a ela continuaram recorrendo os "seus filhos".

Dias explica que por ser "orixá das cabeças", ela "concede saúde mental" e "propõe harmonia entre o sentimento e a razão".

"Esta orixá traduz o símbolo feminino das mulheres dos seios fartos, é capaz de alimentar todo o mundo. É a orixá que nutre, que alimenta, gerando abundância e prosperidade às suas filhas e seus filhos", completa.

Eugênio ressalta que todo orixá tem seus arquétipos mas o que sintetiza Iemanjá é o da "grande mãe".

"Todos somos filhos de Iemanjá, ela é a grande mãe do mundo, a representação das águas que, pelos oceanos, unem todos os continentes", argumenta ele.

"Ela traz também essa noção fundamental de ancestralidade."

"A mensagem de Iemanjá para a humanidade é de união, de respeito, de igualdade. Todos lembrando que somos filhos dela, somos irmãos", resume o babalorixá.

"Na festa de Iemanjá estão todos, não só os adeptos do candomblé. São pessoas de várias origens, várias crenças e ela abençoa a todos sem nenhuma distinção."


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No Brasil

Os estudiosos ouvidos pela reportagem acreditam que a divindade ganhou importância no Brasil justamente por conta do processo de escravização.

Por ter ela esse papel materno e, consequentemente, fazer de todo uma só família, ela foi fundamental para refazer os laços dos escravos separados de seus parentes durante o processo de migração violenta e forçada.

"Em torno dela as famílias se organizam", diz Eugênio.

"Para as religiões de matriz africana, ela foi a possibilidade de refazer, reinventar a família, que no processo de escravização havia sido esfacelada. Em termos simbólicos, Iemanjá representou o compromisso de recriar a família, promover a união na diáspora."

Para o historiador Guilherme Watanabe, pai de santo do terreiro Urubatão da Guia, em São Paulo e membro fundador do Coletivo Navalha, no Brasil o culto a Iemanjá foi a resposta "ao rompimento dos laços familiares e afetivos" causados pelo regime escravocrata.

"Com o sequestro das famílias africanas, há episódios de mortes de familiares ainda nos navios negreiros e a separação deles no desembarque, quando eram encaminhados para locais diferentes de trabalho", pontua.

"Ser filho ou filha de orixá era uma forma de estarem ligados à sua origem ancestral, uma forma de recapitular o passado, reestruturar os laços."

No Brasil, a devoção a ela "extrapola as religiões de matriz africana", ressalta Eugênio.

"Todos os brasileiros de um jeito ou de outro são devotos dela. Ela é a grande mãe do povo brasileiro, faz parte do imaginário. Está profundamente arraigada em nossa formação."

"Há quem diga que Iemanjá é uma santa católica, muita gente confunde e acha isso. Isso é um traço de aculturação que faz parte da formação do povo brasileiro. Vamos juntando elementos", prossegue Eugênio.


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