Boa dia leitores amigos. No "Livro de Sexta" dessa semana iremos apresentar o Ensaio Literário do sociólogo e jornalista José Maria e Silva falando sobre adaptação do livro “O Alienista”, de Machado de Assis, coordenada pela escritora Patrícia Secco. A fonte do texto é a Revista Bula.
Localizado nas proximidades do Viaduto do Chá, que, desde a
inauguração em 1892, se tornou, durante muitos anos, o principal cartão
postal da cidade de São Paulo, o Vale do Anhangabaú será palco, em junho
próximo, de um evento literário inusitado — um túnel construído não por
concreto, mas por 60 mil livros. Trata-se do lançamento da nova edição
de uma das mais importantes obras da língua portuguesa de todos os
tempos, a novela “O Alienista”, de Machado de Assis, que, depois da
morte do escritor em 1908, separou-se de “Papéis Avulsos”, o volume de
contos em que fora originalmente publicado em 1882, e se tornou um livro
autônomo, traduzido em vários idiomas. Mas não se trata exatamente da
obra-prima de Machado — o que o leitor vai encontrar nesse lançamento
faraônico é uma adaptação de “O Alienista”, coordenada pela escritora
Patrícia Secco e patrocinada pelo Ministério da Cultura, por intermédio
da Lei Rouanet.
“Entendo por que os jovens não gostam de Machado de Assis. Os livros
dele têm cinco ou seis palavras que não entendem por frase. As
construções são muito longas. Eu simplifico isso”, disse Patrícia Secco,
em 4 de maio último, numa entrevista ao jornalista Chico Felliti, da
“Folha de S. Paulo”. Proprietária da Secco Assessoria Empresarial S/C
Ltda., que juntamente com sua pessoa física já teve aprovados no
Ministério da Cultura projetos que somam cerca de R$ 10 milhões
captados, Patrícia Secco produz literatura infanto-juvenil em ritmo
industrial, com mais de 200 títulos publicados, a maioria com temas da
moda, como meio ambiente, direitos humanos e inclusão social. Com o
propósito de facilitar a leitura de quatro clássicos da literatura
brasileira, Secco pedira autorização ao Ministério da Cultura para
captar R$ 1,53 milhão; por incrível que pareça, foi autorizada a captar
R$ 1,45 milhão, ou seja, quase o montante que havia pedido para seu
projeto. Na prática, conseguiu captar uma cifra milionária — R$ 1,039
milhão — para produzir dois livros a serem lançados num mesmo volume: “O
Alienista”, de Machado de Assis, e “A Pata da Gazela”, de José de
Alencar.
A princípio, a ideia de adaptar um clássico não é necessariamente
condenável, especialmente se for para crianças. As adaptações de
clássicos da literatura — começando pela Bíblia — devem ser tão antigas
quanto o ato de ler. Em sua já clássica “Uma História da Leitura”, o
argentino-canadense Alberto Manguel conta que, em 1387, John de Trevisa,
que estava traduzindo do latim para o inglês a epopeia “Polychronicon”,
do monge beneditino Ranulf Higden (c. 1280-1364), resolveu fazê-lo não
em versos, mas em prosa, pois sabia que o público já não queria ouvir
uma recitação pública da obra (que, por sinal, se tornaria muito popular
no século XV), preferindo lê-la diretamente. Da mesma forma, a “Divina
Comédia”, de Dante Alighieri, originalmente escrita em versos, mereceu
adaptações em prosa e versões condensadas para crianças, que exploram o
viés aventureiro de sua viagem ao Inferno, Purgatório e Céu,
transformando-o numa espécie de Julio Verne do espírito.
Uma das primeiras justificativas para se adaptar uma obra é, sem
dúvida, sua extensão. Poucas crianças são capazes de ler um romance ou
uma epopeia que se estende por mais de 500 páginas. A boa adaptação é
uma espécie de resumo que tenta extrair a essência da obra sem
desvirtuá-la. Carlos Heitor Cony, que adaptou diversos clássicos para o
público infanto-juvenil, como Dostoiévski, Melville, Mark Twain, Dumas,
Gogol, Eça, Manoel Antônio de Almeida e Julio Verne, ao ser indagado
numa entrevista à revista “Cult” se reescrevia ou resumia os livros,
respondeu: “Era uma condensação. Eu eliminava pontos mortos, alguns
diálogos, detalhes técnicos. Deixava o texto mais denso. Mas preservava a
história, o clima e principalmente a expectativa”. Cony foi taxativo:
“O bom adaptador não falseia o original”.
Facilitação de Machado nega o escritor
Paulo Freire: pedagogia análoga à escravidão condena o pobre à fala de tijolo, como se um operário não pudesse ouvir estrelas |
Infelizmente, Patrícia Secco falseia Machado de Assis. Além de lhe
desfigurar o estilo, ela o emburrece. Sua adaptação é um retrocesso, que
sacrifica até os avanços linguísticos do estilo machadiano, já
ousadamente próximo da linguagem coloquial, numa antecipação das
vanguardas do modernismo que só iriam se consolidar no Brasil quase meio
século depois. A autora esqueceu-se de que Machado, assim como Borges,
Beckett, Graciliano, não dá para ser adaptado em prosa sem que se perca a
essência de sua arte. A obra machadiana é basicamente linguagem. Em
seus romances, não há enredos rocambolescos nem profusão de personagens,
como há em Homero, Cervantes e nos clássicos românticos. Mesmo “O
Alienista”, talvez o enredo mais movimentado de toda a sua obra, depende
substancialmente da linguagem, pois é nela que moram a argúcia e a
ironia do conto.
Para justificar sua adaptação, Patrícia Secco recorre a afirmações
demagógicas. “Estou horrorizada. É muito triste pensar que algumas
pessoas acham que Machado de Assis, o mestre da literatura brasileira,
não pode ser lido pelo sr. José, eletricista do bairro do Espinheiro,
que, apesar de gostar de ler, não cursou mais que o primário, ou pelo
Cristiano, faxineiro de uma farmácia de Boa Viagem, que não sabe nem
mesmo o significado da palavra boticário”, disse a escritora-empresária à
repórter Maria Fernanda Rodrigues, do “Estadão”, em matéria de 9 de
maio último. Ora, quem disse que um faxineiro não pode compreender
Machado de Assis? Se fosse assim, o próprio Machado — descendente de
agregados e ex-escravos, somente com o ensino primário — nem existiria.
Foi justamente porque em seu tempo não existia uma Patrícia Secco
facilitando-lhe Camões, Vieira e Almeida Garrett que o Machadinho do
Morro do Livramento embebeu-se dos clássicos, aprendeu francês sozinho e
não apenas se tornou capaz de compreender os mestres da literatura
universal como até mesmo se tornou um deles.
Com sua adaptação de “O Alienista”, a escritora-empresária Patrícia
Secco destrói a universalidade da literatura de Machado de Assis com a
pequenez ideológica da pedagogia de Paulo Freire. Foi o criador da
“Pedagogia do Oprimido”, uma espécie de marxismo de autoajuda, quem
consagrou a tese pedagógica de que o aprendizado é um epifenômeno das
circunstâncias materiais e é somente a partir delas que se pode
alfabetizar uma criança e despertar-lhe a consciência. O pedagogo
brasileiro foi um grande admirador de Mao Tsé-Tung e, assim como o
monstruoso comunista chinês mandava os lavradores arrancarem até as
flores nativas, porque eram inúteis no universo do trabalho, Paulo
Freire também arranca as palavras burguesas da cartilha do trabalhador,
determinando a alfabetização a partir das tais “palavras geradoras”,
como “tijolo”. É o que chamo de pedagogia análoga à escravidão — o filho
do lavrador deve ter os olhos presos ao chão e está proibido de ouvir
estrelas.
Patrícia Secco professa a mesma filosofia: se o faxineiro da farmácia
não sabe o que é “boticário”, que se arranque então essa maldita
palavra dos textos clássicos. Nunca ocorreu a ela que seria muito mais
fácil, barato e respeitoso oferecer um dicionário ao faxineiro? Aliás,
um trabalhador que resolva ler “O Alienista” — e isso está longe de ser
raro — nem precisará de dicionário para descobrir o significado dessa
palavra. O próprio conto, que sempre associa o boticário Crispim Soares a
remédios, já lhe oferece a resposta. Além disso, tão logo veja a
palavra no texto, o faxineiro irá se lembrar de que existe uma rede de
perfumaria com esse nome e, por associação de ideias, poderá lembrar-se
da palavra “botica” que pode ter ouvido a um parente mais velho. Caso
não disponha de um dicionário em casa, o faxineiro machadiano sempre
poderá consultar uma pessoa letrada de seu meio, parente ou um
conhecido, que se não for capaz de sanar sua dúvida, saberá onde
encontrar a resposta. Ou Patrícia Secco acha que só existe vida
inteligente em seu meio social e que nas classes pobres não há ninguém
capaz de trocar ideias com um faxineiro interessado em literatura?
Continuação do Ensaio (AQUI)
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