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A Soberana do Sertão — por Adriana Negreiros

                         FOTO RETIFICADA E COLORIZADA POR RUBENS ANTONIO SOBRE ORIGINAL DE BENJAMIN ABRAHÃO BOTTO


E
nvolvidos por uma nuvem de poeira dourada que ajudaram a levantar, cerca de dezenove cavalos encerraram o galope em frente à tenda onde Dadá via os dias morrerem, jogada em uma rede, no Caldeirão de Marcionílio, no Raso da Catarina.


Mundão com mais de 100 mil hectares de solo arenoso onde a temperatura facilmente ultrapassa os 40oC, o Raso é o pedaço mais seco e inóspito do semiárido brasileiro. A paisagem formada por pedras e arbustos se repete ao longo das veredas daquela espécie de deserto, engendrando um labirinto fatal para desavisados que tentem passear por ali. Desde tempos antigos existem histórias sobre sertanejos que penetraram no Raso e, sem conseguir achar um caminho de volta, morreram de sede sobre o chão esturricado. A água escassa só poderia ser encontrada em depressões próximas às rochas por almas sortudas ou habitantes locais – caso dos indígenas pankararés.

Foi com eles que Dadá passou longos meses depois de deixar a casa de dona Vitalina. Atuando como guias para cangaceiros que identificaram no Raso o mais perfeito esconderijo (poucos eram os soldados com bravura suficiente para empreender uma caçada no local), os pankararés cuidaram da esposa de Corisco quando ela teve seu primeiro filho. Lourinho como o pai, o menino ganhou o nome de Josafá. Contava alguns dias de nascido quando foi retirado dos braços da mãe e entregue a um fazendeiro especializado na engorda de gado. No instante em que deu adeus ao bebê, Dadá sentiu, conforme definiria um dia, a maior dor do mundo. Meses depois, receberia a notícia de que Josafá não vingara.

Como não utilizavam métodos contraceptivos e precisavam estar disponíveis para seus homens, as cangaceiras podiam pegar barriga a qualquer momento. Uma vez que os filhos nascessem, deveriam passá-los adiante, na primeira oportunidade. Frágeis recém-nascidos não combinavam com a bruta rotina do cangaço, entre espetadas de sol e chuvas de tiro. Além disso, o choro denunciaria a presença dos bandoleiros para as forças oficiais.

Depois de descer da montaria, o comandante da tropa, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, adentrou a barraca a convite de Corisco.

– Essa é a minha menina, compadre – apresentou o Diabo Louro

O capitão caiu na gargalhada.

– Desmamou essa, hein?

O gracejo deixou Dadá ainda mais possessa. Ela já estava enfurecida com Corisco por ele não ter permitido que ela levasse para o novo coito[2] do Raso as bonecas que costurara durante a gravidez, quando morava com os indígenas. Produzidas com tecidos que deveriam ser utilizados para a confecção de roupas, haviam sido confiscadas pelo marido e distribuídas entre as filhas dos coiteiros. “Pensei que tinha uma mulher e o que tenho é uma menina brincando de boneca”, ralhara Corisco.

Como se não bastasse a imensa infelicidade que cercava sua vida, ainda precisava lidar com a galhofa do capitão e, para tornar tudo mais terrível, seria obrigada, nos dias seguintes, a suportar a companhia de Maria de Déa.[3] Não tolerara a Rainha do Cangaço desde que a vira, toda cheia de si, ao lado do marido. Considerava-a abusada, ranzinza, orgulhosa, metida a besta e barulhenta. Detestava sua risada dobrada, suas constantes tentativas de puxar conversa e implicava com sua forma de se vestir, “arrumadinha como uma boneca”.

Maria de Déa, de fato, estava sempre nos trinques, ornada com algumas das melhores joias que já tinham circulado pelo sertão nordestino. Exibia sete correntes de ouro em volta do pescoço, todas furtadas de Joana Vieira de Siqueira Torres, a baronesa de Água Branca, da cidade alagoana de mesmo nome, cujo casarão fora assaltado por Lampião quando ainda integrava o bando de sinhô Pereira, em 1922. As mãos de unhas curtas traziam anéis em quase todos os dedos. Reluzentes brincos de ouro faziam conjunto com um broche do mesmo material, fixado ao tecido da vestimenta – ou à jabiraca, o lenço de seda pura usado junto aos colares.

Penteado de lado, o cabelo de Maria era moldado em ondulações, rente à cabeça, com o auxílio de fivelas. Amiúde, as madeixas ficavam protegidas por chapéu de feltro com aba média, em torno de 7 centímetros. A despeito do tecido pouco nobre, em todo o resto o acessório era pura ostentação, com moedas, botões e medalhas de ouro presos na testeira e na passadeira.

Nos apetrechos de guerra, também gostava de ter alguns luxos. O punhal de 32 centímetros que trazia junto à roupa era confeccionado em prata, marfim e ônix. O cabo do facão, com lâmina protegida por rústica capinha de couro, era de ouro e marfim. O binóculo com que poderia avistar as volantes a distância era de fabricação alemã e se assemelhava aos utilizados pelas madames das grandes cidades enquanto assistiam a partidas de turfe. Conduzia-o a tiracolo, cuidadosamente guardado em delicado estojo azul-acinzentado.

Maria também recendia a aroma adocicado. Se a ocasião não permitisse um banho com sabonete Dorly, salpicava generosas quantias de água de colônia na pele. Nisso, assemelhava-se ao marido, Lampião, que não dispensava o toque floral do Fleurs d’Amour, da maison parisiense Roger & Gallet – assim como os estoques de uísque White Horse, o perfume chegava-lhe pelas mãos dos amigos coronéis que adquiriam tais hábitos burgueses em temporadas de lazer na Europa.

Naquela época, a fama de Lampião já ultrapassava as fronteiras nacionais. No dia 28 de novembro de 1930, o jornal The New York Times noticiaria, pela primeira vez, as façanhas do companheiro de Maria de Déa. “Bandido brasileiro ataca cidade”, informaria o jornal, acerca das investidas do bandoleiro no estado de Pernambuco. Um dia depois de ter seu nome publicado na imprensa dos Estados Unidos, Virgulino tomaria como refém um cidadão norte-americano. Virgil Frank Smith, missionário que pregava na cidade de Mata Grande, em Alagoas, foi capturado pelo bando quando passeava a cavalo com a esposa e um amigo. Os três seriam soltos horas depois, sãos e salvos, mas sem dinheiro e com duas montarias a menos.

Apesar da reputação internacional – em 1931 seria classificado pelo mesmo The New York Times como o bandido mais notório da América do Sul –, Lampião não vivia seus melhores dias. A amizade com o coronel Petro, o rico e mulherengo latifundiário que o acolhera em seus primeiros dias na Bahia, chegara ao fim. Segundo rumores, Petro passara a perna em Lampião em alguns negócios nos quais tinham se associado. Havia fortes boatos de que o Rei do Cangaço entregara generosa quantia em dinheiro para que Petro lhe comprasse terras e gado. Traiçoeiramente, depois de embolsar os contos de réis do capitão, o fazendeiro teria denunciado seu paradeiro ao tenente Manoel Neto, um dos mais ferozes e obstinados perseguidores de cangaceiros da polícia pernambucana.

Para azar do coronel, seu plano foi descoberto. Lampião não só conseguiu se livrar da caça de Manoel Neto como jurou se vingar do novo inimigo. Assim, sempre que possível, saqueava e incendiava as fazendas do traíra. Em abril de 1931, depois de roubar e colocar fogo em uma dessas fazendas, na região da Várzea da Ema, comandou 21 asseclas em aterrorizante turnê pelas cidades da região. A viagem durou até o mês de maio. Com as companheiras protegidas em coitos, o bando de Lampião explorou o interior baiano, assaltando propriedades e matando eventuais aliados do coronel Petro. Mais do que isso: segundo a imprensa, açoitavam, marcavam com ferro quente seus inimigos e estupravam as mulheres que encontravam pelo caminho.

“Lampião, o famigerado ‘capitão’ Virgulino, continua a espalhar pelos sertões o luto, a miséria e a desonra”, informou a edição de 24 de abril de 1931 do jornal A Noite, do Rio de Janeiro. Para ilustrar a matéria, o editor do vespertino escolheu a foto de um chicote e uma palmatória, acessórios que teriam sido usados pelo bando para violentar mulheres na cidade de Itiúba e proximidades. Segundo informara o serviço telegráfico especial do jornal, jovens que seguiam as tendências da moda e cortavam o cabelo à la garçonne – curtinho, como o da atriz Louise Brooks, musa do cinema mudo – eram submetidas a uma excruciante sessão de chicotadas. Reforçado na ponta com sola dupla e crivado de tachas, o chicote provocava mais estragos do que a outra arma incomum usada pelo grupo: a palmatória “talhada em madeira tosca, sendo grande e grossa”, conforme escrevera o repórter de A Noite. O chicote pertencia ao cabra Nevoeiro. A palmatória, aplicada nas mãos de velhas senhoras, era do menino Volta Seca.

“Lampião continua depredando o nordeste baiano, tendo desvirginado dezessete moças, ferrando faces diversas. Moças foram brutalizadas por vinte bandidos, estando algumas em estado gravíssimo”, registrou, em 3 de maio, o Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro.

Dentre os meninos de Lampião, o mais afeito à ferrada era Zé Baiano. No bornal, a bolsa típica dos cangaceiros, carregava dois ferros de marcar boi com a inscrição JB, iniciais de José Baiano. Depois de aquecer o objeto no fogo em brasa, pressionava-o contra a face, a genitália, a nádega ou a panturrilha de suas vítimas, todas do sexo feminino. O ferro incandescente fazia liberar forte cheiro de carne queimada e marcava as mulheres em definitivo, como ocorrera, segundo a edição de 11 de junho do jornal A Noite, com a jovem Maria Felismina, da localidade de Várzea da Ema, na região de Santo Antônio da Glória, na Bahia. Uma foto de perfil de Maria, morena de cabelo curto, nariz empinado e sobrancelhas grossas, ilustrava a matéria: logo abaixo da orelha, a marca com as iniciais JB.

Naquela excursão macabra, Lampião causaria um enorme prejuízo a Petronilo. Por outro lado, Virgulino enfrentaria uma perda de valor incalculável: a morte de Ezequiel, seu irmão, durante combate contra as forças do tenente Arsênio Alves de Souza, de cuja força volante participavam ex-jagunços do coronel inimigo. A essa única baixa entre os cangaceiros se somaram outras catorze do lado da lei. Ao fim do tiroteio, além do corpo de Ezequiel, os rapazes carregaram os despojos dos soldados mortos e o arsenal deixado pelos macacos – como os cangaceiros se referiam aos soldados e policiais –, incluindo a metralhadora que o tenente Arsênio abandonara durante a fuga – mas não sem antes tirar-lhe o carregador, de forma que se tornaria uma arma sem qualquer utilidade nas mãos dos salteadores.

Depois do combate contra o tenente Arsênio, Corisco decidiu viajar sozinho e aceitou a proposta do capitão para que deixasse sua menina com ele e Maria de Déa. Nem sempre seria daquele jeito. Corisco não era um cabra ordinário, um simples cangaceiro. Inclusive, quando raptou Dadá, nem andava com Lampião – que, àquela altura, ainda não atravessara o rio São Francisco e tampouco tinha mulher fixa.

Desertor do Exército, Corisco virara bandoleiro depois de fugir da cadeia, em 1926. Tinha sido condenado a quinze anos de prisão pela morte de um jovem que defendera a namorada, uma pobre moça que havia recusado dançar com ele durante uma festa na cidade de Lagoa do Monteiro, na Paraíba, onde Corisco trabalhava como faz-tudo na fazenda de um coronel.

Depois de discutir com o jovem e levar um forte tapa no rosto, o Diabo Louro foi até a casa do patrão, pegou um rifle, voltou ao forró e esvaziou a cartucheira no corpo do rapaz. Um cabra macho como ele não poderia deixar uma agressão como aquela impune. Se não revidasse, estaria desmoralizado para sempre diante dos moradores da cidade.

Meses depois de ser aceito por Lampião, Corisco decidiu largar o grupo e tentar a vida na Bahia. Viveu escapando das perseguições e se envolveu em toda sorte de confusão – por conta própria e com a ajuda dos amigos coronéis – até novembro de 1928, quando reencontrou o mentor. Retornou ao bando com seu primo Hortêncio Gomes da Silva, o Arvoredo, notório por sua força acima da média. Dias depois, fortaleceria o time com outros três parentes: Beija-Flor, Jurema e Ferrugem.

Embora fosse reverente ao capitão, Corisco tinha seu próprio subgrupo, como viria a acontecer com outros cabras com espírito de liderança. Dividir os rapazes em diferentes equipes e promover os funcionários mais leais à chefia, além de medida administrativa ao espírito das grandes firmas, era uma estratégia do Rei do Cangaço para despistar e desmobilizar a polícia. Após receber informações sobre a presença de bandoleiros em diferentes localidades, as volantes ficavam baratinadas, com poder de mobilização comprometido.

No subgrupo de Corisco, Dadá era a rainha, apesar do cenho fechado e da mínima disposição para representar um império. O posto não a impedia de receber, de vez em quando, insulto de cabras menos poderosos do que seu consorte. De certa feita, escutou de Pancada: “No meio de tanta moça bonita que viu, Corisco acha de casar com uma negona dessa.” Ficou feliz ao ver o marido reagir à ofensa: não matou Pancada, como fizera com o namorado da moça da Paraíba, mas virou uma fera, destinando-lhe toda sorte de impropérios.

Acima de qualquer outra mulher, contudo, quem dava as cartas era a esposa de Lampião. Maria de Déa, a Maria do capitão, reinava soberana entre as cangaceiras, para desgosto de Dadá. “Bacana que só ela, só quer ser mais”, definiria Dadá a respeito da Rainha do Cangaço.

Se Dadá não ia com a cara de Maria, a recíproca, ao menos, parecia ser verdadeira. Porém, Dadá logo caiu nas graças do capitão. Durante a gravidez, quando viveu com os índios, havia costurado não apenas bonecas, como também testara novas estampas para os bornais. Inventara um bordado diferente, com motivos florais e geométricos multicoloridos, e aplicara-os sobre o bornal de Corisco. De tão exuberante, a peça logo se transformou em motivo de cobiça. “Pode fazer um bordado desses pra mim?”, pediu o capitão. Dadá, toda prosa, respondeu que sim. Nos dias seguintes, dedicou-se a confeccionar o mais lindo dos relevos para ele. Conquistar a simpatia e a confiança do chefe, quanto mais um chefe como Lampião, não era oportunidade para ser desperdiçada.

Maria de Déa também sabia costurar, mas não brilhava à frente da máquina Singer. Embora utilizasse o equipamento nos coitos mais sossegados, limitava-se ao convencional: roupas para si, para o marido e, eventualmente, para outros cangaceiros, mais para passar o tempo enquanto os homens combatiam do que por necessidade.

No sertão do começo do século xx, o manejo de linhas e agulhas não era uma atividade exclusivamente feminina. Os vaqueiros produziam os próprios gibões e chapéus e primavam pela beleza, além do aspecto utilitário da indumentária. Cangaceiros também se dedicavam à produção de seus trajes – mais do que simples vestimentas, verdadeiros uniformes de guerra. Se Lampião apreciara o bordado de Dadá era porque dominava o assunto e sabia reconhecer a sofisticação de uma trama. Entre os sertanejos, costurar e bordar não era ocupação que denunciasse pouca macheza.

Nos grandes centros urbanos, contudo, homem interessado em pontos e fios seria, com grandes chances, tido por afeminado. Já das mulheres que almejassem o título de boas esposas se esperava, no mínimo, talento para pilotar uma Singer. Em 1918, a Revista Feminina, que circulava em São Paulo e tinha por intrigante missão promover “a emancipação das mulheres”, conclamava:

“Nada mais lastimável que o fato, quase geral, das senhoras não saberem talhar e confeccionar a roupa branca de seu uso e de sua casa. Quantas economias gastas por essa ignorância? Quantas horas de ócio esterilizador poderiam ser empregadas agradavelmente, até moralmente, se a mulher quisesse se consagrar algumas horas do dia a confeccionar a roupa necessária a seu lar?”

Tanto na cidade quanto no sertão, porém, a costura findava por ser uma das raras atividades nas quais as mulheres podiam dar vazão à criatividade. Também proporcionava alguma possibilidade de vida social. Era comum que as senhoras se reunissem para cerzir, alinhavar e tricotar, ocasiões aproveitadas para bater papo e descansar da exaustiva e solitária vida doméstica.

Todavia, era prudente alguma moderação: segundo tese de doutorado do médico Antônio dos Santos Coragem, formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1919, pedalar as máquinas produzia excitação vaginal. Para evitar uma epidemia de luxúria entre as donas de casa, recomendava-se o uso das máquinas possantes apenas uma vez por semana.

Maria costumava se deslocar pelo Raso da Catarina no lombo de Velocípede, um burro selado do qual sentia imenso orgulho. Doida por bichos, ficava uma fera quando alguém zombava de seu animal de estimação. Tratado com ternurinhas, Velocípede era, contudo, uma criatura mimada e ingrata. Se estivesse num mau dia, galopava a ponto de deixar sua amazona botando os bofes para fora. Certo dia, durante uma travessia pela caatinga, Maria se impacientou com o burrico. Ao ver que Dadá seguia tranquilamente no lombo de um cavalo muito raquítico, mas seguro em seu passo lento, Maria determinou que trocassem as montarias:

– Vá no Velocípede que eu vou no cavalo.

A contragosto, Dadá seguiu no lombo do burro nervoso até a próxima parada. Naquela mesma noite, daria o troco, selando de vez a amizade com o marido da rival. O sol já havia se recolhido quando, devidamente instalada na barraca, a esposa de Corisco recebeu a visita de Lampião. Nas mãos de veias saltadas, o homem trazia uma melancia grande, com listras grossas.

– Toma lá e vamos ser compadres. Agora a senhora vai me dar também um presente que é pra gente selar o compromisso.

Dadá respondeu que não tinha nada para dar em troca e os dois ficaram ali, numa “risadaria dos pecados”, sob o céu estrelado do Raso. Em seguida, ao som do crepitar da lenha, deram o primeiro salto na fogueira: era noite de São João. Foram imitados por outros cangaceiros, que saltavam e se compadreavam. A partir de então, Dadá começaria finalmente a se sentir à vontade no cangaço.

Maria, embora tivesse entrado naquela vida por querer, também precisou se acostumar a algumas situações incômodas. A sua vida íntima com Lampião não era uma constante lua de mel, como não fora com Zé de Neném, o sapateiro José Miguel da Silva, seu marido, que ela deixara para seguir o cangaceiro. Nos coitos onde se refugiavam, o sexo era raro. O código de conduta sexual, elaborado a partir de crendices e superstições, desestimulava relações às sextas e vésperas de mudanças. O melhor seria esperar três dias depois do sexo para pegar a estrada. Tirando essas situações, os casais se dedicavam à volúpia apenas quando sabiam estar plenamente a salvo de um ataque repentino dos macacos. Só assim os cabras se sentiam seguros o bastante para abrir mão da proteção divina – antes da relação sexual, em respeito ao Pai Eterno, tiravam do pescoço os colares com saquinhos nos quais traziam orações para os mais diferentes santos. Lampião carregava oito delas, além de um crucifixo em ouro maciço – assim como os colares de Maria, a peça também pertencera à baronesa de Água Branca.

Outro item raro nos ranchos era a privacidade. Como as toldas ficavam próximas umas às outras, podia-se ouvir facilmente os sons do casal vizinho. Às vezes, acontecia de alguém acordar no meio da madrugada tomando por rugido de onça o que era gemido de acasalamento. Os cangaceiros solteiros, talvez para não se sentirem provocados por algo de que não poderiam dispor no momento, dormiam em barracas mais distantes, com as cabeças acomodadas sobre os bornais.

Apesar de a água ser escassa no sertão, sobretudo no Raso da Catarina, uma pequena quantidade costumava ser reservada para a higiene íntima das mulheres, de maneira que estivessem constantemente asseadas para seus homens. Estes, por sua vez, não se prestavam ao mesmo cuidado. Submetiam suas mulheres ao risco de contrair toda sorte de doenças venéreas adquiridas em saídas para o combate. Depois de uma troca de tiros ou uma matança, como ocorrera na cidade sergipana de Capela no final de 1929, os cangaceiros costumavam visitar a zona de meretrício da região.

Quando regressavam aos seus esconderijos, os salteadores se submetiam a desconfortáveis tratamentos para as doenças – o que não diminuía o orgulho que sentiam diante da situação, visto que tais males eram tidos como manifestação de virilidade. Para combater a gonorreia, bebiam um preparado de ovo com sumo de doze limões, deixado ao sereno durante toda a madrugada. A gororoba só fazia efeito se fosse ingerida antes do sol nascer. Os abcessos intumescidos que se formavam na virilha em decorrência do linfogranuloma, popularmente conhecido como “mula”, eram abertos a canivete e espremidos até que a última gota de pus fosse drenada. De todos os cangaceiros, Zé Baiano era o mais habilidoso na tarefa. Se a região genital estivesse infeccionada a ponto de deixar o camarada correr feito doido, providenciava-se um fogaréu, sobre o qual o doente deveria ficar de cócoras.

Outras condutas se impunham ao convalescente: evitar banhos, não vislumbrar mato verde, dispensar comidas carregadas – café, carne de porco e de animais que beliscam, como pato – e, acima de tudo, jamais pisar em rastro de corno. Se o sujeito tivesse a infelicidade de botar os pés no mesmo lugar onde um cabra com chifre houvesse pisado, todo o tratamento seria posto a perder.

Por razões óbvias, nenhum cangaceiro jogava charme para Maria de Déa, muito embora suas pernas grossas e cintura fina pudessem inspirar pensamentos impuros em muitos dos rapazes. Certa vez, um deles, ao perceber que era a esposa do patrão quem se banhava no riacho, apressou o passo em sentido contrário, com o chapéu ao lado do rosto, tapando-lhe parte da visão. Apesar de o regulamento do bando não permitir puladas de cerca, nem tudo ocorria conforme as regras. O cangaceiro Balão, embora fosse radicalmente contra a presença de mulheres no bando, acabaria envolvido em um triângulo amoroso com Pancada (o que recriminara Corisco por escolher uma “negona” como esposa) e sua companheira, Maria Jovina – ou Maria de Pancada, como se tornaria conhecida.

Baixinha e de pele clara, com rosto redondo e farto cabelo encaracolado, Maria de Pancada entrara no grupo ainda recém-saída da infância. O marido não fazia o tipo carinhoso. Certa vez, irritado, obrigou a mulher a acompanhá-lo a pé enquanto viajava a cavalo. Para aumentar o sofrimento da moça, arrastava-a pelo cabelo quando o bicho corria a galope. A tortura durou o dia inteiro.

Conforme relataria anos depois, Balão se envolveu com Maria por iniciativa dela própria. Inocente quanto aos intentos libidinosos da esposa, Pancada teria pedido ao amigo para acompanhá-la em uma caminhada. O destino seria um ponto da caatinga em que ela pegaria alguns objetos pessoais. Tão logo deram os primeiros passos, a moça teria partido para cima do cangaceiro:

– Dizem que você é muito macho nas brigadas, mas queria ver se você é homem mesmo – provocara.

– Não diga isso, Maria, que depois você se arrepende – respondera Balão.

Minutos depois, como a moça não cessava a investida e o acusava de ter medo de Pancada, fora imobilizada por Balão, que a possuíra entre mandacarus e xique-xiques. Antes de voltarem para as tendas onde estavam os demais cangaceiros, fizeram sexo uma segunda vez. Curiosamente, Balão gostava de defender o celibato cangaceiro. Segundo dizia, homem que tivesse relação sexual deixava o corpo igual melancia: qualquer bala poderia atravessá-lo.

Não há relatos de que, em algum momento, Maria de Déa tenha sofrido violência física de Lampião. Tudo indica que, no trato cotidiano, o cangaceiro-mor tratava sua esposa de forma paciente e carinhosa, respondendo com bom humor suas constantes crises de ciúmes. Zé Baiano, o entusiasmado ferrador de mulheres e espremedor de abcessos, igualmente dispensava requintes de ternura à companheira, a bela Lídia. Chegava a ponto de lhe dar comidinha na boca, oferecer os melhores pedaços de carne e, ao final da refeição, limpar delicadamente os lábios da companheira com um singelo paninho.

Na intimidade dos coitos, Lídia gostava de usar vestidos folgados, de forma que, ao se debruçar, muitas vezes acabava por proporcionar a visão de seus seios. Como ria muito, dava-se com todos e parecia não se importar com o prazer visual que pudesse vir a provocar nos companheiros, era tida por mulher vulgar. “Cabelo bom, moderninha, toda jeitosa. Mais do que isso. Atraente! Encanto de pequena! Sapeca. Uma perdição”, diria, a respeito da jovem, o médico Estácio de Lima – o mesmo que definiria Zé Baiano como “lombrosiano”.

É possível que a Pantera Negra dos Sertões tratasse bem sua mulher por saber o quanto, em segredo, era invejado por outros rapazes. Afinal, a mulher mais desejada entre as cangaceiras pertencia a ele.

E “pertencer” é a expressão que melhor explica a relação matrimonial entre os cangaceiros e suas companheiras. No bando, quer tratassem suas mulheres com mesuras, quer as agredissem fisicamente, os cangaceiros as consideravam suas propriedades. O código do cangaço previa que as mulheres deviam fidelidade e submissão a seus companheiros, sendo permitido a eles, quando se sentissem contrariados, penalizá-las da forma que melhor lhes aprouvesse. Com a morte, inclusive.

Trecho do livro Maria Bonita – Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço, a ser lançado em agosto pela Objetiva.


[1] Antônio Teodoro dos Santos, em Maria Bonita, a mulher cangaço.
[2] Local onde se refugiavam os cangaceiros, com a ajuda de fazendeiros e coronéis, por isso mesmo chamados coiteiros.
[3] A baiana Maria Gomes de Oliveira era chamada desde a infância de Maria de Déa, em referência a sua mãe. Nem a família nem o bando de Lampião a tratavam por Maria Bonita, apelido que só se difundiu após sua morte. Há algumas versões sobre a origem desse nome. Uma delas diz que se tratou de invenção dos repórteres dos jornais do Rio de Janeiro, possivelmente inspirados no filme Maria Bonita, lançado em 1937 e baseado na obra de mesmo nome de Afrânio Peixoto, de 1921. Outra, que teria sido dado por soldados que se impressionaram com a beleza da cangaceira, quando da chacina em que ela foi morta, em 28 de julho de 1938, aos 28 anos.


ADRIANA NEGREIROS

Adriana Negreiros, jornalista freelancer, foi editora das revistas Playboy e Claudia





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