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Canto do Urutau - Parte I | por Marcello Silva

Foto:  Marcelo Dutra/WikiAves

Não sei o que é dormir tranquilamente há 25 anos. Durante esse tempo algo me falta. Um vazio que dilacera minha paz interior. Por mais que eu reze e peça a Deus que me ajude, não consigo dormir sem que esses pensamentos e lembranças povoem meu quarto.

Ouviu... Esse barulho na porta? Será que é ele?

— Vó, cadê você? — é minha bisneta. Ela tem dez anos e não sabe dessa história. Enquanto ela se aproximava, eu enxuguei as lágrimas e tentei disfarçar:

— O que foi Lívia?

— A mãe disse que é para a senhora ir lá para casa hoje às 18 horas para novena — disse me olhando seriamente.

Assenti que sim. Concordei. Fingi não saber de nada e que seria apenas a novena de Nossa Senhora de Fátima, mas eu sabia que estavam organizando uma festa de aniversário. Era para ser surpresa, mas já sabia. Eu percebo ou sei de quase tudo, afinal 80 anos não são 80 dias.

Sabia que nessa festa estaria toda família reunida; sabia que viriam meus irmãos, filhos e netos que moravam em outras cidades. Sei que sim. No entanto, o vazio permaneceria em mim, meu coração sentiria a falta de Ivanilson, meu filho amado.

Ivanilson saiu de casa numa tarde fria de junho, era dia 23. Lembro bem. Ele se foi e não voltou mais. Os motivos para sua saída de casa eu não gosto de relembrar. Já são 25 anos, 6 meses e 2 dias que não o vejo e nem sei nada sobre ele, não sei sequer se está vivo; não sei se passa fome ou frio... Não sei. Há este vazio, esta incerteza.

Ainda que minha casa esteja repleta de pessoas, sempre existirá essa lacuna; uma cadeira vazia, um prato a mais na mesa. Quando todos dormem vou até a porta principal e a destranco para caso ele venha e eu esteja dormindo. A porta estará sempre aberta, bem como minha esperança. Tenho fé em Deus e minhas inúmeras promessas a São Francisco me trarão Ivanilson de volta.

Na hora marcada cheguei à casa de Olívia, uma das minhas filhas. A mesa pequena situada na sala sobre a qual reluzia a imagem de Nossa Senhora de Fátima, rodeada por flores e velas. Estavam lá todos os familiares que moravam na comunidade. Mas enquanto rezávamos ouvi vozes diferentes na cozinha e cochichos no pátio. Percebi gente chegando.

Terminado o último louvor à Nossa Senhora de Fátima, soaram fogos ensurdecedores lá fora.

— Parabeeéns pra você! — a sala foi invadida por irmãos, filhos, filhas, netos, netas e bisnetos... Fui sufocada por tantos abraços.

Dentre tantos conhecidos e outros que não via há algum tempo, procurei por Ivanilson. Por um instante, pensei que o tivesse visto. Queria ali, naquele instante, o abraço dele também.

— Cada vez mais nova, hein! — uma voz vinda de alguém que estava atrás de mim. Ao me virar reconheci o rosto alegre de Lucrécia. Comadre Lucrécia.

— Quanto tempo comadre! — disse sorrindo ao abraçá-la.

Depois de minutos de diálogos com comadre Lucrécia, ela fez uma pausa enquanto observava o barulho da sala repleta de pessoas festivas. Olhando em meus olhos ela indagou:

— E meu afilhado Ivanilson, nunca mais deu notícias, né comadre? — esta pergunta soou seca como um disparo metálico à queima-roupa, sem dar chance de defesa. Senti o gosto de sangue na boca como se alguém me apunhalasse a garganta. Eu chorei. Eu só chorei. Fui amparada por alguém. Puseram-me no sofá enquanto recobrava os sentidos. Comadre Lucrécia segurava minhas mãos me pedindo desculpas. Respondi com um beijo na face.

No restante, ocorreu tudo normal. Pessoas, refrigerantes e pedaços de bolos passeavam na sala. Senti-me bem naquele instante de festa. Depois dessa algazarra na casa de Olívia, voltei para casa acompanhada de meus filhos que vieram da capital: Elizabete, Luís e Carlos e seus respectivos filhos.

A noite, rainha soberana, era iluminada por uma lua em quarto crescente. Eram 22 horas quando chegamos à casa. Estava me sentindo bem com a presença dos meus filhos e os afagos dos meus netos. Armaram redes na sala e corredores. A casa voltou a ficar cheia de gente como antigamente. Eu gostava quando isto acontecia.

Aos poucos o sono e o cansaço chegaram e as vozes dos netos foram diminuindo gradativamente, enquanto o barulho do silêncio se fazia reinante. Vez ou outra, os cães latiam com medo da caipora, talvez. É nesse silêncio da madrugada que o vazio do meu coração se expande, se reconhece e renasce. Tento dormir, mas ouço uma voz vinda da estrada de terra. É sempre alguém me chamando de mãe e pedindo a bênção. É sempre Ivanilson. No morro, atrás do quintal, a mãe-da-lua cantava. Este pássaro tem o dom de traduzir minha solidão e minha dor em seu cantar gótico e melancólico. Ave que, talvez eu tenha visto uma ou duas vezes na vida, mas seu canto é meu fiel companheiro nas madrugadas insones. Vou ouvi-lo até o romper da aurora, talvez.

SILVA, Marcello. Homo Cactus.1. ed. Araras: Editorial Hope, 2018. p. 21




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