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Canto do Urutau Parte II | por Marcello Silva

Foto:  Marcelo Dutra/WikiAves

Era outubro, o sol ardia na pele e nas pálpebras. Cansada aos meus 81 anos, deitei no tucum armado no alpendre. Tentei dormir entre lembranças e suores.

Quando eu estava quase cochilando, ouvi passos de alguém que chegava. De súbito levantei a cabeça e reconheci Agnaldo, meu neto. Percebi algo de estranho em seu semblante. Agnaldo era sempre calmo e discreto, chegava a minha casa sem fazer barulho, entrava e pegava café sem que eu notasse. Mas dessa vez não. Ele tremia e tinha os olhos marejados. Assustei-me:

— O que foi, menino? — eu falei me levantando e já me preparando para uma notícia ruim.

— Nada não, vó... É que... — ele riu desviando o olhar. Seu sorriso dissimulado me acalmou um pouco, porém continuei inquieta.

Agnaldo sacou uma câmera digital e começou a me filmar. Eu não entendi coisa alguma naquele instante. Ele me encarou e apontou para o terreno. Olhei firme e, apesar da miopia, percebi a silhueta de um homem que se aproximava. O caminhar tão igual a tantos dos meus; a cor da pele igualmente familiar.

O vulto foi se aproximando gradativamente em uma lentidão desesperadora. Fui reconhecendo aquele jeito de jogar os braços de lado ao caminhar; aquelas pernas tortas eram as mesmas do menino que brincava de corre-corre com os irmãos entre os cajueiros do meu quintal...

Era Ivanilson, meu filho querido... Reconheci quando ele ficou a uns dez metros de mim. Ivanilson 26 anos mais velho, mas para mim era o mesmo garoto. Desejei pular o peitoril do alpendre e correr para abraçá-lo, mas fiquei estática. Enquanto ele se aproximava, um filme de lembranças passava por minha mente. Imaginava Ivanilson de tantas formas e rostos... De como seria sua chegada. Não seria mais um sonho parecido com tantos outros devaneios que tive nesses 26 anos?

— Bênção, minha mãe... — embargou a voz. — Eu voltei!

Abracei aquele ser humano como se mais nada no mundo houvesse; como se minha vida dependesse da exclusividade daquele abraço. Eu quis chorar com o peito em erupção, mas não consegui derramar mais lágrimas, haviam secado todas as gotas, chorei tudo que podia nesses 26 anos.

Eu não falei nada. Silenciei em choro abafado. Não perguntei se estava bem, por onde andou ou o que fez. Naquele instante, eu só olhava aqueles olhos marejados e me via refletida como alguém que observa uma obra de arte. Procurei em Ivanilson todas as particularidades: a sua orelha marcada; a mancha no cotovelo esquerdo... O sinal no queixo. Era real. Meu garoto, meu Ivanilson. Por Deus! São Francisco e Nossa Senhora de Fátima.

Foi a tarde mais feliz dos últimos 26 anos. Chegou a noite trazendo consigo um vento frio. Ivanilson sentado em uma cadeira ao lado do meu tucum, conversávamos tomando um café quente, quando soou o canto da mãe-da-lua.

— Nossa, mãe! Quanto tempo não ouço esse canto... — Ivanilson sorriu olhando a imensidão da noite — a mãe da lua parece feliz.

— Com certeza, meu filho. Com certeza... Hoje ela está muito feliz — conclui.


SILVA, Marcello. Homo Cactus. 1. ed. Araras: Editorial Hope, 2018. p. 69



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