O artigo publicado na edição de fevereiro da Revista Continente.
Cerca de 100 quilômetros distante da mais populosa cidade da Nova Zelândia – Auckland, com 1,6 milhão de habitantes –, está localizada a mais autossuficiente ilha do país. Na Ilha da Grande Barreira (Great Barrier Island, em inglês, ou Aotearoa, em maori) não existe rede de energia elétrica. As casas, prédios públicos, aeroporto, biblioteca, bares, restaurantes e mercados são, quase em maioria, iluminados por fontes de energia renovável – principalmente solar e eólica. São quase mil habitantes vivendo de forma completamente autônoma, alheios à praticidade da vida moderna, por opção. Alguns anos atrás, eles foram consultados pelo governo neozelandês para saber quantos optariam pela rede de energia elétrica se tal se fizesse disponível. Um total de 99% votaram para permanecer como estavam. E não estamos falando de uma comunidade hippie, mas de uma população com diferentes histórias e crenças de vida.
Acredita-se que Great Barrier foi o ponto original de chegada dos “exploradores” da Polinésia, que a partir daí descobriram as duas grandes ilhas que formam a Nova Zelândia ou Aotearoa (“terra da longa nuvem branca”, como denominaram os povos maoris). Atualmente considerada remota, Aotearoa já foi bastante acessível no passado, tendo uma longa história de ocupação, tanto pelos maoris quando pelos pakeha (como são chamados os colonizadores europeus). Ainda que seja um destino “fora da rota turística”, a ilha tem recebido nos últimos anos, especialmente no verão, milhares de turistas. Obviamente, eles vão em busca da diversidade natural do lugar.
Caity e Gerald, diretores da empresa Okiwi Passion |
Em torno de 60% da ilha está sob a coordenação do Departamento de Conservação (Department of Conservation – DOC), o principal órgão ambiental do país. Portanto, é uma área bastante protegida da especulação imobiliária. O DOC oferece aos visitantes trilhas muito bem mantidas ao longo de toda a costa, por dentro das florestas nativas (como a de manuka, típica da Nova Zelândia, que cobre mais de 50% da ilha) ou por cima das montanhas. A área territorial da ilha é semelhante à cidade do Recife – enquanto Great Barrier tem 285 quilômetros quadrados, Recife tem 218 quilômetros quadrados. São necessárias em torno de duas horas e meia de carro para cruzar a ilha de ponta a ponta. Também sob administração do DOC, existem, pelo menos, dois abrigos (que são casas com dormitórios coletivos), além de seis áreas de acampamento espalhadas por toda a ilha.
São muitas as possibilidades de atividades ao ar livre, como a pescaria, o surfe e o mergulho. A costa oeste é considerada mais selvagem, de floresta mais densa, enquanto a leste oferece praias de areia branca e águas cristalinas. Um dos lugares mais populares é certamente a nascente de Kaitoke, que formam piscinas naturalmente aquecidas. A principal área urbana fica ao sul da ilha, no porto de Tryphena, onde diariamente, durante a alta estação, aporta o ferry vindo de Auckland. Em seguida está Claris, no centro-leste, onde estão localizados o aeroporto e o maior complexo de placas solares da Nova Zelândia. São 250 painéis produzindo energia para sete lojas locais, um pequeno centro comercial. Por fim, o porto de Fitzroy, a parte mais isolada, mais ao norte.
A ilha é conhecida pelo peculiar estilo de vida de seus habitantes. Lá, o tempo passa devagar, quase alheio ao relógio. A comida é frequentemente colhida da própria horta, pescada ou caçada. Crianças são criadas com muita liberdade e intenso contato com o rico ecossistema do lugar. Por necessidade e por consciência, a ilha é um exemplo para aqueles habitantes de grandes centros urbanos que estão em busca de caminhos mais amáveis com a natureza – minimalismo, autoconsciência e vida sustentável.
Para 2040, a população local vislumbra uma nova meta: ser os primeiros da NZ a não depositar qualquer lixo em aterro. A partir de então, só entrará na ilha material reciclável e reutilizável. Para se ter uma ideia do seu pioneirismo nesse quesito, até mesmo a rádio comunitária local é 100% amparada em energia solar, a única do país. Constantemente citada nos jornais nacionais, Great Barrier é tratada como um exemplo de “liderança” no caminho para enfrentar os efeitos da mudança climática. Suspeito que há algo de urgente a aprender com o estilo de vida dos que escolheram morar em tal lugar.
Há cerca de 13 anos, os neozelandeses Caity e Gerald Endt decidiram deixar para trás seus empregos, começando uma vida e um empreendimento completamente fora dos padrões. Ao dar dinamismo aos 3,5 hectares de terra que Gerald herdou da família, o casal fundou o Okiwi Passion, no norte da ilha, uma das suas áreas mais remotas. Trata-se de um pomar onde são plantados, de forma orgânica e segundo os princípios da permacultura, uma variedade de mais de 50 vegetais, legumes, ervas e frutas. A empresa já é conhecida por fornecer as fartas cestas de vegetais, cujos itens variam sazonalmente. A produção, local e de pequena escala, é suficiente para alimentar boa parte da ilha, abastecendo cafés e restaurantes, uma barraca na feira comunitária que acontece todos os sábados, além da mesa de várias famílias. Por um mês, participei do dia a dia da empresa como voluntária (pelo site Woofing.org.nz). Observei e vivi a rotina, com suas belezas e limitações, numa ilha que parece situada, ironicamente, entre o passado e o futuro que urgimos ter.
Chegamos em pleno inverno, portanto, baixa estação. Desde que surgiu a ideia de visitar a ilha, fomos aconselhados que a viagem deveria ser bastante planejada. Para chegar, só existem duas opções. O citado ferry, que leva cerca de quatro horas para chegar lá, partindo de Auckland. Ou um avião com apenas 12 lugares, com voo de 40 minutos de duração. Ambos os meios de transporte são bastante dependentes do clima. A ilha não levou a alcunha de “barreira” à toa. Amparada pela peculiar topografia, ela defende o Golfo Hauraki (situado entre Auckland e Great Barrier), um dos mais movimentados do país, dos fortes ventos vindos do Oceano Pacífico. Reservamos uma vaga no ferry com um mês de antecedência, dado que os lugares são bastante limitados. No verão, é preciso se antecipar ainda mais. O fluxo de pessoas (a maioria, turistas) quase triplica entre os meses de dezembro e fevereiro.
Esse, porém, é só um detalhe, diria até insignificante, diante dos preparos que se seguiriam. A ilha não tem caixa eletrônico ou banco, por exemplo. Cobertura de celular e wi-fi somente na área do aeroporto. Os mercados são locais e pequenos. Em razão do alto custo de transporte, o preço dos produtos é o dobro do encontrado nas grandes redes de supermercados do resto da Nova Zelândia. Existem apenas dois postos de gasolina, sendo que um deles, no porto Fitzroy (no norte da ilha), só é abastecido duas vezes na semana. Seria preciso, portanto, levar o carro com o tanque cheio, comida e bebidas, além de algum dinheiro na carteira.
Em inglês, existe um conceito que define o estilo de vida daqueles que se denominam autossuficientes e levam a vida desconectados da rede de eletricidade: off grid. No documentário Life off grid (2016), dirigido por Jonathan Taggart, um dos entrevistados, Karl, que vive na costa oeste do Canadá, em British Columbia, resume: “Nós gastamos nosso tempo lidando com as três coisas que as pessoas na cidade gastam menos tempo. Calor, luz, água”. Para aquecer a casa, é preciso cortar a lenha e reservar. Para ter energia suficiente para usar o computador, por exemplo, é imprescindível fazer um manejo inteligente da captação da luz solar. Quanto à água, todo o sistema de encanação e fossa é responsabilidade de cada morador, que precisa levar em conta os possíveis danos ambientais. Na Ilha da Grande Barreira, todo aquele que decide morar ali precisa cuidar, de forma independente, desses três aspectos.
Nos primeiros anos na ilha, Caity e Gerald tinham em casa um sistema de energia solar muito mais limitado que o de hoje. Quase religiosamente, todas as luzes ou aparelhos eletrônicos se mantinham desligados para evitar o consumo. “Poderíamos usar o aspirador de pó ou a máquina de lavar, mas somente quando tínhamos pleno sol e apenas no meio do dia. Quando Gerald estava em diálise, tivemos que obter um gerador grande, pois ele estava na máquina por várias horas a cada dois dias e nossos painéis solares não geravam energia suficiente para isso”, lembra. Atualmente, com o consumo mais inteligente e placas de energia solar mais robustas, o pior que pode acontecer é ficar sem internet por um ou dois dias, se o clima permanecer nublado. “Mas isso não é problema para a gente”, esclarece Caity.
Em Okiwi Passion, trabalhei com a norte-americana Bree Bierdman, há um ano e meio contratada como assistente pela empresa. Ao lado da sua companheira, a canadense Rylie, elas chegaram a Great Barrier para passar apenas duas semanas. Contrariando todas as possibilidades, as duas conseguiram contratos de trabalho de longa temporada e decidiram ficar. Já são 15 meses na ilha. É a primeira vez que Bree trabalha com as mãos na terra, uma completa mudança de cenário e perspectiva, quando lembra sua vida em Boston (EUA), quando atuava no departamento de recursos humanos numa empresa de tecnologia. “Eu trabalhei com isso por cinco anos. Profissionalmente, me sentia bastante frustrada, mas socialmente estava bem feliz. Fiz muitos amigos incríveis, mas me dei conta de que a vida de escritório não era para mim. Então, comecei a viajar”, lembra Bree.
Questionada sobre qual seria o maior desafio desse novo estilo de vida, ela mencionou a necessária adaptação ao “compasso da ilha”. “Todo mundo é tão tranquilo. Venho de uma vida em grandes cidades e o meu processo de adaptação para uma vida mais tranquila e literalmente devagar tem sido difícil e recompensador. Tudo parece estar atrasado ou, ao menos, levar muito tempo para acontecer (como minha resposta para esse e-mail). E eu não estou acostumada com isso. Se você precisa ou espera que alguma coisa seja feita em uma semana, é preciso reajustar suas expectativas para um mês depois”, conta Bree. Durante o período que ficamos na ilha, o meu carro quebrou e precisamos contactar um mecânico local. Ele não tinha telefone, mas nossos anfitriões sabiam que ele poderia ser encontrado tomando uma cervejinha no fim de tarde no porto de Fitzroy. Assim, entre idas e vindas, foi preciso duas semanas para consertar o carro. “Um ou dois dias, pouco importa”, repetia com espirituosidade Gerald, horticulturista e uma das pessoas mais criativas que já conheci.
Para dar conta desse estilo de vida “fora dos padrões”, criatividade deve ser quase como um estado mental. Quase nada se compra. Quase tudo se inventa e reutiliza-se. “Aprendemos a simplificar e a parar de acumular coisas. Ser cada vez mais exigente consigo mesmo no ato de comprar. Se for o caso, comprar por uma questão de qualidade e não de quantidade”, conta Caity. Tal mentalidade é facilmente identificada quando observadas as soluções encontradas para tornar o trabalho no Okiwi Passion mais eficiente e fluído. Para lavar e enxugar a deliciosa salada de microvegetais que acompanha as cestas de vegetais, Gerald apareceu um dia com a ideia de usar uma velha máquina de lavar. Ele reprogramou a máquina para apenas funcionar como uma centrífuga. Até então, o processo era completamente manual. Hoje, uma questão de alguns segundos. Outro material amplamente usado por Gerald é o bambu. Além de proteger a plantação dos fortes ventos, o bambu está presente na cerca ao redor de cada bloco de plantação, nas casinhas das galinhas, na estrutura das estufas.
Ainda que seja possível encomendar de Auckland alguns produtos, que chegam a Great Barrier de avião (junto com os passageiros), essa não pode, nem deve, ser a principal opção, uma vez que o translado está sempre sujeito às intempéries do clima, bem como à disponibilidade de espaço dentro dos aviões. O que poderia ser um obstáculo foi inteligentemente transformado por Caity e Gerald em criatividade. O repertório alimentar me surpreendeu positivamente a cada refeição. Enquanto me ensinava a técnica de semeadura, Caity me explicou que, a cada ano, ela faz experimentos, plantando diferentes variações em cor, textura, tamanho e sabor de um mesmo vegetal. Entusiasta da jardinagem, Caity tem por princípio expandir o repertório do que comemos diariamente, com a finalidade de reconectar as pessoas com o que elas comem. Aproximar, e não distanciar. Outro aspecto do nosso cotidiano que vem se perdendo com os anos, diante da cada vez mais artificial e plastificada indústria alimentícia.
Resiliência, simplicidade e “relações positivas e profundas” são aspectos vitais para lidar com a vida off grid, segundo Caity. “Ao longo desses anos, aprendi algumas coisas sobre mim mesma. Uma delas é que sou bastante resiliente. Tive que tocar a empresa sozinha por vários meses, com a ajuda dos voluntários, claro, enquanto Gerald estava lidando com problemas de saúde em Auckland. Também me dei conta de que não preciso de muitas coisas e que as relações que construímos são imprescindíveis para a nossa qualidade de vida”, diz. “Viver aqui me permitiu dar conta de que não preciso de quase nada para viver, para ser franca. Podemos produzir e fazer praticamente tudo que precisamos. Menos coisas e mais tempo me dá a oportunidade de levar meus hobbies adiante e descobrir novos, como a jardinagem e a pesca. Isso porque trabalhamos menos, porque não precisamos de muito dinheiro para viver aqui”, complementa Bree.
CAROLINA ALBUQUERQUE, jornalista.
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